O ofício da atuação foi iniciado em Atenas, na Grécia antiga, em 550 a.C., como celebração ao Deus Dionisio, ou Baco, o Deus do vinho, da vegetação e da fertilidade, e é um dos mais longevos, diferenciados e instigantes na história de toda a humanidade. Segundo Aristóteles (384- 322 a.C.), o primeiro ator ocidental do mundo, em que se tem notícia, era o poeta Téspis de Icária (610-550 a.C.), que se insurgiu do Coro e interpretou a primeira personagem da história: o próprio Deus Grego Dionosio. Nasceu daí a arte do ator. Em todas as partes do mundo, a trajetória de um cidadão artista, por sua natureza transgressora e contestadora, e que vive na contramão das convenções sociais; jamais se finda com a sua aposentaria, em média após 30 anos de trabalhos prestados à sociedade. Assim, ao contrário de um cidadão não artista, que se aposenta normalmente após três décadas de labuta, o mesmo não ocorre de maneira nenhuma com um artista. Aos intérpretes do teatro, podemos fazer assim uma óbvia analogia ao vinho; “de que quanto mais velho, fica-se melhor”.

Isto é o mínimo que podemos dizer, para começar a traduzir o significado que representa a nós ao assistirmos ao notável ator Othon Bastos, no alto de seus 91 anos, e 73 anos de carreira, que está brilhando em cena no espetáculo Não Me Entrego Não, com texto e direção de Flavio Marinho, no Teatro Vannucci- Shopping da Gávea -; sextas às 20h, sábados às 19h e domingos às 18h. Othon apresenta para nós uma verdadeira aula magna, uma master class, de teatro vivo, ao colocar em revista fases de sua extensa e valiosa carreira, que coincide com a história de nosso teatro brasileiro. Um ator poderoso, vigoroso, apaixonado, resiliente e dono de um vozeirão potente e com fraseado recheado de teatralidade e expressividade. Vemos, dessa maneira, diante de nós, um tour de force de um grande ator ao narrar, viver e se emocionar a nos revelar cada uma das partes de suas histórias, que passam pelo seu início com Paschoal Carlos Magno (1906-1980), no Teatro Duse, em 1952, suas excursões pelo país, e pela sua experiência ao estudar teatro em Londres; onde expõe de coração aberto as vicissitudes que passam todos os intérpretes: a figuração, a ausência de texto, os pequenos papéis e as personagens sem nome próprio que interpretou em sua carreira, de nomes como: moreno, repórter, narrador, o homem, professor; e nos fala também sobre a sua missão empreendedora, – já demonstrando o homem de teatro que viria a ser -, ao fundar a Cia Teatro dos Novos na Bahia, onde participou da inauguração do Teatro Vila Velha, em 1960. Local onde conheceu Marta Overbeck, a sua futura esposa e mulher de toda a sua vida.

Othon nos narra assim, com muita sagacidade, os percursos em que os atores passam, no desenvolvimento de sua carreira, e sendo mais instigante ainda poder desvendar ao público que carreiras bem-sucedidas fazem parte de uma imensa construção que não estão ligadas necessariamente ao sucesso imediato ou instantâneo, mas que é fruto de opções e escolhas; assim como o foi apresentar ao pai do cinema novo Glauber Rocha (1939-1981), a narrativa épica brechtiana. No clássico Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha (1964), havia no roteiro um flashback da sua personagem o cangaceiro Corisco, e Othon sugeriu então que ao invés de Glauber usar este artifício de elipse de tempo, porque ele não poderia narrar a sua própria história, sem imagens filmadas. O que foi aceito pelo jovem cineasta de 23 anos. Forma que fez toda a diferença e que dialogava fortemente com as premissas de um cinema novo – do próprio Cinema Novo -, aquele que tinha como lema principal: “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Assim como o foi também na cena do seu beijo, no mesmo filme, com Yoná Magalhães (1935-2015), em que ele sugere que não seja um beijo plástico Hollywoodiano, mas sim um tórrido beijo carnal, filmado em câmera na mão, em movimento giratório – o percursor da steadycam -, por Waldemar Lima (1929-2012).

Já sobre o filme Terra em Transe (1967) de Glauber Rocha, nos conta sobre a perda do papel para Paulo Autran (1922-2007), por não ter a idade para o fazer. Cita também momentos emblemáticos da história do Teatro Oficina, onde atuou nos magistrais espetáculos O Rei da Vela de Oswald de Andrade (1967), Galileu Galilei (1968) e Na Selva das Cidades (1969), ambos do alemão Bertolt Brecht (1898-1956) e direção do dionisíaco José Celso Martinez Correa (1937-2023).

A partir de 1970 criou, com Martha Overbeck – sua maior musa e esposa há 64 anos, onde a vemos representada por dois olhos azuis na cenografia-, a Othon Bastos Produções Artísticas, com foco na defesa da liberdade de expressão, apresentando um repertório de resistência, onde atuou no emblemático Um Grito Parado no Ar de Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), com direção de Fernando Peixoto (1937-2012) em 1973. Além de Castro Alves Pede Passagem, texto e direção de Gianfrancesco Guarnieri em 1971, Caminho de Volta de Consuelo de Castro (1946-2016) e direção de Fernando Peixoto em 1974, Ponto de Partida texto e direção de Gianfrancesco Guarnieri em 1976, Murro em Ponta de Faca de Augusto Boal (1931-2009) e direção de Paulo José (1937-2021) em 1978, Calabar o Elogio da Traição de Chico Buarque e Ruy Guerra e com direção de Fernando Peixoto em 1980 e Dueto Para Um Só de Tom Kempinski (1938-2023) e direção de Antônio Mercado em 1984.

Em um dos outros momentos marcantes da peça Othon destaca também a sua participação no clássico do russo Anton Tchekhov (1860-1904) O Jardim das Cerejeiras, com direção de Paulo Mamede em 1989, no histórico Teatro dos 4 – que veio declinando dos anteriores Teatro dos 12 e Teatro dos 7. Para reviver uma das cenas mais antológicas da peça Othon faz uma preparação especial, onde a sua personagem Lopakhin (representando a burguesia em ascensão) compra em um Leilão o histórico palacete.  Em seguida, Othon separa a fase mais recente de sua vida, ao se citar como um coadjuvante de luxo do cinema brasileiro, onde participou de filmes importantes como Central do Brasil (1998) de Walter Salles. Ou seja, Othon se desnuda, e abre todo o seu coração para narrar de forma épica, como não poderia deixar de ser; os momentos mais importantes de sua vida e obra.

Para a encenação e dramaturgia do espetáculo, a cargo de Flavio Marinho, coube o papel de organizar o vasto material de uma bela e rica vida artística – e o auxiliando pela presença de um “ponto- memória” -, vivido pela atriz e diretora assistente Juliana Medella; e propiciando também um contraponto contemporâneo ao microfonar Othon, e optar por uma cenografia épica e alegórica, em formato de homenagem com as principais imagens da carreira de Othon – plotadas em molduras variadas de quadros -, e com direito até a referência à sua esposa, ao colocar apenas seus olhos azuis em destaque. Apesar desta leitura distanciada na concepção do espetáculo, fica-nos a sensação de que ele poderia sobreviver soberanamente sem esses aparatos cênicos, exceto pela figura da “memória” – sua fiel escudeira.

Poucos atores conseguem narrar tão bem, com uma voz tão forte e profunda, o binômio palavra e imagem, como Othon Bastos. Sua figura, expressão, visceralidade e declaração confessa – e vista a olhos nus – de amor aos palcos, o faz não se entregar, e poder desfrutar, e nos oferecer o imenso deleite de sua arte plena aos 91 anos! Não me Entrego Não, recebe assim uma reposta à altura de toda a plateia, que reage em entrega fervorosa, e se colocando como uma feliz cúmplice e companheira dessa longíssima jornada histórica: Sim, nós nos Rendemos Sim. Ontem, hoje e até sempre Othon Bastos!” Você honra o teatro mundial, e honra o nobre ofício do ator! Evoé Othon Bastos; assim diria Téspis de Icária; e todos nós! 

Fotografia Beti Niemeyer

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