Espetáculo da jovem Cia La Trapera de Pindamonhangaba, em parceria com o Instituto Atuarte, é responsável em recolocar o fazer teatral da cidade, na geografia nacional do ótimo teatro para a infância e juventude. Reunindo um núcleo de jovens artistas talentosos, mesclados afetivamente com nomes respeitados do teatro brasileiro, a atriz e produtora Herica Veryano, se credencia como um dos nomes fortes do teatro pindense; e que certamente irá alavancar o fazer artístico no município, com larga história de representatividade com o seu FESTE (Festival de Teatro de Pindamonhangaba), que se encontra hoje em sua 44a edição.

O espetáculo “Tatipirun”, uma livre adaptação da obra do genial Graciliano Ramos (1892-1953) “A Terra dos Meninos Pelados”, é por si só, repleto de simbologias para o momento atual em que passa o Brasil. Ramos, que era natural de Quebrangulo, em Alagoas, tem em sua vasta biografia uma passagem pela prisão por um tema que se encontra, infelizmente, na ordem errada dos dias, por pessoas também tão fora de esquadro: o comunismo. Ramos foi preso em 1934, quando se preparava para publicar um de seus próximos livros. Após a Intentona Comunista de 1935, foi levado para o Rio de Janeiro, e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere, lê-se a seguinte passagem, em que Graciliano Ramos recorda a prisão: “…(…). Se todos os sujeitos perseguidos fizessem como eu, não teria havido uma só revolução no mundo. Revolucionário chinfrim. As minhas armas, fracas e de papel, só podiam ser manejadas no isolamento.”

Assim, é impossível para nós, deixarmos de fazer algumas analogias, dadas as circunstâncias da história do Brasil atual, onde acabamos de experenciar também uma prisão injusta e política, do atual presidente eleito do Brasil, e que foi provocada também, entre outros, pelo falso “fantasma do comunismo”. Isto, quando o Brasil, nunca conseguiu sequer ser um país de regime socialista. De início, já é possível identificar que estamos diante da reunião de profissionais que sabem bem o que querem dizer para a cultura nacional, e que se encontram no lado certo, e do lugar certo, da história desse país tão destroçado. O que nos impressiona, justamente neste projeto, é a qualidade de inteligências, e metáforas, que se apresentam em toda a realização do projeto e encenação; que faz ótimo uso, com propriedade, dos diversos instrumentos que a arte nos propicia.

A dramaturgia de Pitanga Araújo e Guilherme Moreira, com consultoria dramatúrgica da premiada autora carioca Renata Mizrahi, é sem dúvida um dos melhores textos de teatro para a infância que eu ouvi nestes últimos 03 anos. O texto original nos conta a história de um menino chamado Raimundo, que era careca e tinha um olho azul e outro preto. Por ser considerado estranho, seus vizinhos não falam com ele e o apelidam de “Raimundo Pelado”. Por não ter amigos, começa a falar sozinho, cria um país imaginário chamado Tatipirun, onde as pessoas têm um olho preto e outro azul, onde não existem cabelos em suas cabeças, e onde as plantas e animais falam. Quando Raimundo “chega” na cidade de Tatipirun ele descobre que os carros, animais e plantas falam, e que em Tatipirun ninguém é machucado e nem ofendido por conta de seu comportamento, por mais aparentemente esquisito que possa ser. Andando um pouco mais, Raimundo se depara com personagens como a Laranjeira, o Tronco Baixinho, a Dona Aranha Vermelha, entre outros.

Na versão escrita por Pitanga e Guilherme, intitulada Tatipirun”, já começamos a ver a boa interferência na escolha do título da peça, que já representa uma percepção na busca essencial daquilo que deve ser dito, ao mesmo tempo em que demonstra uma postura artística em não se fazerem valer do chamariz comercial de uma obra consagrada. É com imensa satisfação que vemos diante de nós a espinha dorsal de uma protagonista que vive uma odisseia, em trajetória de autoconhecimento, escolhendo com bastante propriedade o eixo central do pertencer. Desta maneira, nada mais urgente nesse momento do país do que ratificarmos o empoderamento feminino e ganharmos a personagem central Cora, que entra no lugar de Raimundo, para transbordar por todos os poros o lugar de pertencimento da mulher como agente da ação, e condutora da cena, a protagonista de seu mundo. E para isso a escolha do nome Cora se encaixa na carpintaria teatral. Cora, de origem grega – os pais da democracia -, representa um ser criativo, que age com felicidade para lidar com situações difíceis, é extremamente otimista e desligada de coisas banais. Não tem medo de enfrentar a vida e correr atrás dos desejos e anseios. Cora se concentra para fazer sempre bem-feito tudo aquilo a que se propõe. Está sempre procurando a harmonia interior. É lider, pioneira, corajosa e independente. E assim, Cora, que vive em Cambacará, cercada por paredes e telhados sem graça, forrada por um céu que parece sempre igual (parte do poético texto), em sua viagem para Tatipirun se encontra com seres mágicos, através do realismo fantástico: Farol, Laranjeira, Caralâmpia, Sira, Pirenco e Talima.

Assim, com um projeto muito bem estruturado, com bases profissionais muito fortes também na orientação de pesquisa de Flávia Bertinelli e Pedro Sá Morais, e coordenação pedagógica de Herica Veryano, a encenação de Pitanga e Guilherme constrói um espetáculo repleto de qualidades e inteligências cênicas em um palco essencial e minimalista, onde os desenhos cênicos são criados diante de nossos olhos. A começar pela sofisticação e leveza do piso, dos telões que reproduzem céu e nuvens, e da cortina de voal. Uma cenografia de Adabaílson Cuba que constrói espaços geográficos manipulados pelos próprios atores/personagens, que transformam Cambacará, em um grande céu em Tatipirun, e também o ator em Farol (com perna-de-pau), além de uso de sombra. Cuba é responsável também pelo expressivo figurino, criativo, bem cortado, com relevo, cores, listras. Destaque para o figurino da Laranjeira e a sua peruca de rede com laranjas. Somando-se a tudo isso a delicada maquiagem de Beatriz Araújo e a precisa preparação corporal de Andressa Marques que explora a fisicalidade e técnicas de circo, que juntos com a concepção estética-visual, constroem um universo rico de imagens e sensações. Valorizados também pela competente e bem desenhada iluminação de Olavo Cadorini. Juntando-se a tudo isso, a orientação cênico-musical de Maike Marques, a trilha sonora de Wannie Ramos, e a preparação vocal de Aline Domingues e Laís Ferreira, que criam um ambiente sonoro e polifônico, que perpassa por toda a encenação, e que elevam assim todos os nossos campos sensoriais a experimentarem as sensações hormônicas dos sons e do texto. Em um exercício de polifonia verbal, poética e musical. São muitas as vozes que falam através dessa encenação.

No elenco Pittanga Araújo como a protagonista Cora, tem atuação arrebatadora, enérgica e vivaz na construção clara de seu percurso de buscas e de descobertas, e já estabelecendo, no início da peça, uma empatia com o público ao criar um bordão físico com o seu nome. Maike Marques interpreta o Farol em uma atuação literalmente equilibrada em pernas de pau, e em consonância com a linguagem corporal da encenação. Marques, coringando a personagem Sira, se une a Guilherme Moreira como Pirenco, e juntos fazem uma composição sincronizada, complementar e harmônica; como uma mesma personagem com variáveis e variantes, que se fundem e se contrapõem. Nat Mendrot como Caralâmpia extrai da personagem leveza, naturalidade e precisão. Herica Veryano empresta a sua maturidade artística as personagens Laranjeira e Talima, e mescla inteligência, racionalidade e emoção; imprimindo assim além de fisicalidade, uma grande dose de sinceridade e humanidade para tocar em assuntos tão delicados. Amanda Cardoso é a síntese desta polifonia musical, como uma mulher-orquestra, ao preencher a cena com músicas, sons e percussões em viola, violão, sanfona, triângulo, tambor, coquinho, caxixi, flauta doce e carrilhão -; e ampliando assim as inúmeras relevâncias do projeto “Tatipirun”, que conta também com a ótima coordenação geral de Maíra Fróis.

“Tatipirun” é um projeto que se credencia a representar o munícipio de Pindamonhangaba, do Vale do Paraíba, e do interior de todo o estado, na reconstrução de nossa cultura, e do setor teatral para a infância e juventude, depois de quatro anos de desmonte pelo atual desgoverno brasileiro. Ele reúne uma grande polifonia de músicas, sons, cantos, vozes, palavras, textos, e de profissionais dedicados ao melhor fazer teatral. Tudo isso, em verdadeira consonância com temáticas e posturas que foram tão negligenciadas nos últimos anos: o pertencimento, o lugar em que se quer ser e estar e o empoderamento feminino. Que estas poderosas cigarras, possam se unir com as formiguinhas, e juntas, desbravarem, este nosso novo momento do mundo das artes dos espetáculos, e que assim como Graciliano, a nossa revolução não seja com armas, mas sim também “chinfrim” com papel, textos, palavras, encenações, músicas e muita, muita cultura e educação a todos os brasileiros!





Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *