A palavra play, na língua inglesa possui muitos significados, entre eles: brincar, jogar; além de servir também para designar o ato de representar e atuar. O princípio basilar que move o ator, e o processo de criação, é justamente o jogo, a brincadeira, o acting (atuação, performance). Tudo é jogo. Sabendo muito bem disso, os ingleses Duncan MacMillan e Joe Donahuer, em Todas as Coisas Maravilhosas (no original Every Brilliant Thing), são os responsáveis em dar um passo à frente na abertura das fronteiras que separam o ator da plateia. Ao passarem da escuta passiva para uma atuação ativa; presentificada, eles trazem para dentro da cena, o conceito do jogo total; da ampliação dos limites da cena teatral para toda a audiência. Com a encenação de Todas as Coisas Maravilhosas eles realmente atingem um novo lugar da tão experenciada relação ator x espectador.

Poucas vezes experenciei tão instigante pesquisa como esta em questão. Um encontro como este! Ah, os ingleses, sempre os ingleses; como já dizia um dos seus maiores encenadores britânicos Peter Brook: o teatro é a arte do encontro. Quando ele ocorre é mágico, é inigualável! Ao mesmo tempo em que não podemos jamais deixar de ressaltar que o teatro é, sempre foi, e sempre será, a arte do ofício do ator. Quando o ato inicia, nenhum outro humano submerge tão fundo, e com total autonomia sobre as suas funções, do que o ator de teatro. Quando o ator está em cena cabe a ele, somente a ele executar estrategicamente o plano de voo. Todos os caminhos percorridos, todas as escolhas; tudo isto é fator determinante para que seja cumprido todo o trajeto com total precisão, exatidão, domínio, consciência, inteligência; e claro grande dose de intuição! Afinal de contas, na arte da atuação, nem tudo é tão somente lógica ou matemática.

O monólogo, para o ator, é um experimento muito potente, mas que encontra porém um terreno arenoso; ainda mais quando vem pontuado por experimentos cênicos inquietantes como os desafios propostos pelos jogos de Todas as Coisas Maravilhosas. Para isso, é preciso também de um ator com bastante musculatura de atuação, e aqui, esse ator tem nome e sobrenome: Kiko Mascarenhas. Para dar prosseguimento, no Brasil, a uma trajetória mundial de sucesso neste formato de espetáculo – um fenômeno em Nova York, Portugal; entre outros países -, temos um dos atores brasileiros mais capazes em mergulhar profundamente em uma ideia e concepção. Kiko é um dos atores mais disponíveis e preparados de sua geração. Tendo como marca uma meticulosa composição e arquitetura cênica na construções de suas personagens. Sendo um dos poucos atores que conseguiram levar para a TV – a despeito da sua facilidade em seguir um roteiro de personagens naturalistas -; o emprega de uma consciente tecitura de teatralidade.

Para comemorar os seus 40 anos de carreira Kiko escolheu um projeto dos mais desafiadores, fazer o seu primeiro monólogo, a partir de um texto que acaba por ser escrito a muitas mãos. Todas as Coisas Maravilhosas, é criação viva, que tem a tradução e adaptação fluente de Diego Teza, e a partitura cênica, e escolhas, do ator que a encena. A peça conta a história de um menino que descobre que sua mãe sofre de depressão, e começa a escrever listas de todas as coisas maravilhosas que podem fazê-la recuperar a vontade de viver e as deixa em locais estratégicos, para que ela encontre e redescubra “motivos” para continuar viva. Na peça Kiko usa cards, que são distribuídos no início do espetáculo e onde já se iniciam as combinações entre as partes: eles têm um número, e ao serem solicitados, eles poderão apenas ler o que vem escrito; ou fazerem ações do seu próprio lugar, ou até mesmo se deslocarem no espaço.

Sob a direção generosa de Fernando Philbert, que organiza a encenação e abre caminhos de buscas para que o ator possa construir, a partir daí, as suas partituras; transformam o espetáculo em um processo colaborativo, onde se fundem a ideia tradicional do diretor que dirige e o ator que apenas executa. Kiko, também com a preparação de ator de Ana Luiza Folly, alcança uma atuação de muito requinte, e consegue desenvolver um dos momentos mais marcantes do nosso teatro carioca. Dotado de um imenso carisma, cirúrgico ao escolher os participantes que irão lhe ajudar a contar esta história; e principalmente a delicadeza que o faz chegar até plateia, é cativante. Ele consegue, ao escolher, muito sabiamente, pessoas comuns – não atores -; para atuarem com ele, extrair momentos dos mais impagáveis e absolutamente inusitados de nossa cena. É impressionante o que vemos diante de nós. A delicadeza. A delicadeza com que Kiko explica as regras do jogo que será apresentado a seguir, como ele convida e conduz as pessoas, a jogarem onde estão, ou até irem ao centro da cena, é puro deleite. Um exercício de ator, que está aberto ao imponderável, o que torna tudo isso uma união, e onde todos viramos cúmplices e sujeitos das ações.

Todas as Coisas Maravilhosas, onde o menos é mais, emprega o minimalismo – na direção de arte de Luciane Nicolino, e no figurino cotidiano de Tereza Nabuco -, na ressignificação de objetos, além de trazer à cena também a ancestralidade, e a história do ator – e o seu tempo – que a encena; junto a alguns dos elementos cênicos que contam, em paralelo, pedaços de sua vida em listas, papéis, caixas, livros, revistas, vinil, fotografias.

Nenhuma palavra do dicionário pode descrever, de fato, o que é viver a experiência de estar presente no universo de Todas as Coisas Maravilhosas; que trata de um tema espinhoso de uma maneira tão lúcida e humana, que você sai do teatro absolutamente renovado e celebrando a vida. O quanto é maravilhoso estar vivo, para participar deste encontro único! Sim, a vida as vezes é muito difícil, mas tudo passa! Este espetáculo ficará impresso para sempre na vida de Kiko, e também na de todos aqueles que entraram na sala do Teatro Poeira, para dividir com ele dezenas de minutos da mais grande expressão do teatro da delicadeza. De todas as coisas Maravilhosas, o ator Kiko Mascarenhas, é certamente um dos números de card que todo o bom apreciador de arte já escreveu em um, ou virá a escrever! Vá ao Teatro! Viva a Vida! Viva!

Crédito da Foto: Gab Lara

 Serviço na Sessão Tijolinho Rio de Janeiro

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