Imagine um vendaval de letras. De repente, bem ao gosto dos vendavais, ele varre a Terra e espalha poesia por toda a parte. Não, este não é um sonho impossível, é simplesmente o desejo que move a cena de Kafka e a Boneca Viajante, cartaz do Teatro II do CCBB até dia 30 de julho. A partir do livro homônimo do escritor Jordi Sierra i Fabra, Rafael Primot escreveu um roteiro dramático-musical mais do que envolvente, preocupado em expandir os limites da fábula criada pelo autor catalão.

Sim, é tudo pura invenção, até segunda ordem. Na verdade, a trama básica é simples e direta, mas, por tudo o que se sabe até hoje, ela é totalmente fantasiosa, pois os fatos expostos não teriam ocorrido, não estão comprovados historicamente. Segundo o relato do livro, Kafka (1883-1924), nos seus últimos dias de vida, teria encontrado uma menina chorando inconformada com a perda de sua boneca. Neste momento, segundo asseguram os biógrafos, o próprio Kafka estava em crise, desejava que as suas obras inacabadas fossem destruídas. Segundo a invenção do catalão – muito sedutora, se considerarmos a vontade expressa do autor de não ter obras menores difundidas após a sua morte – Kafka tratou de escrever cartas, como se ele fosse a boneca, simulando que ela se tornara uma boneca viajante. A cada carta, para a alegria da menina, muitas aventuras e um recorte a respeito da vida no mundo. É tudo muito engenhoso, sob a suposição de que a arte restabelece o encontro de cada ser com a mais intensa pulsão de vida.

A cena, em todas as suas vertentes, amplia em alta voltagem o gesto criativo do texto original. Trata-se de uma autêntica farra litero-teatral. A adaptação assinada por Rafael Primot incorpora um sem-número de referências a respeito da vida e da obra de Kafka, sempre revestidas por um toque elegante de humor. A direção de João Fonseca segue o tom, incorpora o jogo. A partir de uma atmosfera mágica, sugestão do recanto do poeta, o diretor arma e desarma cenas lúdicas, musicais, dramáticas e distanciadas, narrativas e representadas… Enfim, propõe um jogo teatral vertiginoso. O cenário de Nello Marrese, quase tão viajante quanto a boneca, reproduz o tom sugerido a partir do uso de volumes e formas praticáveis, objetos manuseados pelo elenco. Um grande móbile, coroado com uma bússola e um olho de boneca, acompanha as andanças da trama pelo mundo. Logicamente, a ação é puro movimento: para que a boneca viaje e carregue a plateia junto na divertida ciranda, a luz sublime de Paulo Cesar Medeiros reúne contenção e sensibilidade em doses generosas. Impacto semelhante é oferecido pelo figurino de João Pimenta, capaz de passar por várias transformações, por vezes bem divertidas.

Alcança enorme impacto, contudo, a direção de movimento de Marcia Rubim; a sua assinatura confere uma delicada poesia às cenas dramáticas e alcança resultados mágicos inesquecíveis no desenho dos gestos da boneca animada encarnada por Alessandra Maestrini – a solução corporal encontrada é de tirar o fôlego de qualquer criatura de carne e osso. Tony Lucchesi se projeta neste espetáculo um pouco além das funções convencionais de diretor musical, arranjador, condutor de vozes e executante. Ao lado do fato de as músicas da trilha sonora, bem conhecidas, na sua maior parte emprestadas do cancioneiro popular, apresentarem um forte alcance inventivo, ele criou composições originais modeladas de acordo com as exigências do gênero, soluções eficientes para o andamento da trama. Mas, ao enveredar nas viagens pelo mundo, a montagem estoura deliberadamente os contornos temporais da trama, associáveis à vida de Kafka, para brincar com as definições e estereótipos a respeito dos lugares. O mundo se projeta como  uma passarela de emoções compartilhadas, atuais.

De acordo com o espírito da montagem, os atores aparecem em papéis fixos, protagonistas da trama central humana, e se desdobram, teatralmente, nos descaminhos da trama pelo mundo. A proposta funciona muito bem, é abraçada pelo elenco com dedicação e alegria. Neste jogo, André Dias impressiona ao materializar um Kafka adoentado, precocemente envelhecido, mas poético, denso recorte humano. Em contraponto, ele se torna um Soldadinho de Chumbo lúdico, na medida exata entre o brinquedo e o militar.

Alessandra Maestrini arrebata os corações como uma boneca de pano autêntica, plástica, quase invertebrada, mas inteligente. E brinca com esperteza com a sua aparição complementar, ao se transformar na mãe da menina, uma associação de papéis no mínimo curiosa. A cena ganha um ar envolvente, de puro aconchego, com a presença afetiva intensa de Lilian Valeska, no papel de Dora, a companheira de Kafka que teria relatado a história, um horizonte que se amplia em abismo quando ela assume o papel da Gaivota. Contar com as duas vozes em cena – Alessandra Maestrini e Lilian Valeska – é garantia de cenas de canto de impacto, em especial nos duetos, pois a Gaivota passeia com a Boneca por vários lugares do mundo.

Encarregada do papel da menina, a jovem Rita, Carol Garcia se impõe em cena com muito carisma, sem soluções fáceis, sem caricatura tatibitati e sem apelação.  O seu papel dobrado é o de Rita adulta, registro de um perfil importante para as intenções mais profundas do texto. A menina Rita, afinal, não se tornou escritora, sequer chegou a ser leitora de Kafka, ainda que as cartas escritas por ele, sem que ela soubesse da verdadeira autoria, tivessem apoiado a superação da sua crise do fim da infância.

Neste diapasão, Kafka e a Boneca Viajante se afirma como uma proposta inquietante, ao lançar um desafio para que se discuta o poder da arte na vida miúda de todos nós sob um cálculo bem ousado. A hipótese não é a utopia de ter a arte como alavanca para transformar o mundo, botar a vida e as pessoas de cabeça para baixo. Ao contrário: está em cena apenas a proposição de uma modesta revolução sentimental mínima, bem delicada. No final do espetáculo, vale destacar, a luz se acende sobre uma plateia a um só tempo feliz e emocionada – os sorrisos largos e as lágrimas discretas aparecem como um patrimônio comum, como se todas as almas tivessem sido varridas por um irresistível vendaval de criação poética.

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