Quanto mais achamos que sabemos alguma coisa sobre brancos e pretos na história da humanidade, logo descobrimos que ainda estamos engatinhando nesse tema de relações interraciais. A começar, a casa do centro do poder mundial é chamada de Casa Branca, quando um assunto precisa ser entendido, em sua plenitude, dizemos que as coisas precisam ficar claras, a pureza e a paz são representadas pela cor branca; assim como também é branco os capuzes e os lençóis que vestem a Ku Klux Klan – uma organização terrorista que foi criada depois da Guerra Civil Americana por ex-soldados confederados com o objetivo de perseguir e assassinar pretos. O mundo sempre foi pintado de branco, e esse assunto muito é muito grave, e de extrema urgência! Não se trata apenas de buscar um respeito as diferenças, e a diversidade em uma sociedade pacífica; mas sim de tomarmos a consciência de que lidamos, nesse assunto com a vida e a morte! Quanto é que vale a vida de um branco? E quanto é que vale a vida de um negro?

Desde que eu era uma pequena criança branca, com origem europeia,- e ainda há umas duas décadas atrás -, éramos criados por nossos familiares de acordo com uma cartilha muito bem definida sobre quais eram as regras vigentes nas relações sociais, pessoais e de trabalho, entre brancos e negros. Sendo sempre ensinado para nós que os brancos estavam sempre em primeiro lugar ,- em qualquer assunto ou em regra de escrita -, e os negros, sempre abaixo de nós, sendo os mesmos ex-escravizados, que deveriam ser tratados como cidadãos de segunda classe. Isto, para refletir apenas o pensamento de famílias que não apresentavam, ainda que aparentemente, sinais de um racismo explícito. Tudo isso era tratado de forma natural e assertiva; como se fosse a ordem natural das coisas; e passada de gerações em gerações.

Foi somente nos anos 90, que a minha geração começou a ter uma certa consciência de que algo estava errado com estes discursos de elogio à branquitude, e que aos poucos íamos descobrindo que a história da humanidade era contada, e escrita, por brancos, pelos escravocratas, pelos vencedores e opressores; e que por isso esta era considerada a história oficial a ser ensinada, apreendida e replicada por todos nós também através da escola, e de todos os livros didáticos de nossa vida escolar. Essa sempre foi a história de orgulho, de valor, de respeito e credibilidade que todo o bom aluno tinha que saber e agir como tal. Naquela época, eram raros os professores que conseguiam nos dar alguma pista sobre tudo isso, sem tomarem partido e lado. Sim, também por isso, nunca foi fácil para nós, crianças e jovens- em formação -, assim como ainda é hoje em dia, muito difícil às crianças e jovens terem plena consciência e posicionamento sobre qual é a história verdadeira, e que não se pode aceitar que a “história oficial” é apenas a que é contada e ensinada pelos brancos.

Assim, durante décadas de nossas vidas, fazia parte de nosso vocabulário natural, nos referirmos a uma mulher negra que amamentava os filhos de seus senhores ou patrões, como uma “ama de leite”. Ela realmente não era conhecida pelo seu nome próprio, mas sim pela sua função no servir a Casa Grande. Como era também comum ouvirmos alguém, ao querer elogiar um negro, dizer: mas ele/a é um negro/a de alma branca, que o nome certo para se dirigir a uma pessoa de cor – sim, era assim que eles nos ensinavam -, seria negro e não preto, pois preto era a cor do lápis de cor; e o correto nesse caso, era dizermos negro, pois era assim que deveríamos chamar: de raça negra. Com tudo isso crescemos assim, acreditando que era esse o tratamento respeitoso que teríamos que atribuir aos pretos ou negros, em nosso país.

Por conta de tudo isso fomos repetindo todos estes erros; como em um mantra macabro, e apagando de nossa história a vida, a cultura, os costumes, as religiões, as expressões artísticas, as versões de fatos e as versões da história dos negros; em vias de que não se dava espaço, e muito menos, um lugar de fala ao preto. Por centenas ou milhares de isto e aquilo; na última década a expressão “racismo estrutural” começou a tomar corpo e a alcançar a todos os quatro cantos do país. Nesse momento o Brasil passou a discutir, a debater, e a entender, que as expressões ou atitudes que pareciam inofensivas – aos brancos-, na verdade fazem parte da má estrutura que sempre foi desenvolvida na relação vertical dos brancos com os pretos. E são tantas, que talvez não caibam nesse espaço: amanhã é dia de branco (dia de trabalho), a bá é tão querida que é quase da família (a bá não tem nome próprio, e o é quase da família, lhe dá o simples direito a um cubículo – as vezes sem janela -, e a comer depois do que sobrar do banquete dos patrões), quando vir um preto na sua mesma calçada, disfarça e atravessa a rua, para não ser assaltado (um negro é sempre um potencial agente da criminalidade – diziam eles), pretos só devem subir em elevador de serviço, ao se ver um negro correndo, cuidado pois ele pode ter acabado de cometer algum delito, se há dois funcionários (um preto e um branco) em uma academia e você procura por um faxineiro, você ao ver os dois, com o mesmo uniforme, você se dirige ao preto,…ou seja, como disse acima, poderia ficar eu a preencher espaços e mais espaços, infinitamente, para demonstrar o quanto de absurdos nos foi ensinado durante séculos.

Tudo isso para dizer um basta! Basta! Já está mais do que na hora de entendermos que a história do mundo nos foi mal contada propositadamente; e de que não podemos mais ter desculpas de não sabermos o que é “racismo estrutural”. Todos precisam ter a consciência de que faltou todo este conteúdo em nossa educação, e de que não devemos mais medir esforços em buscar esses conhecimentos nos livros, em cursos, nos jornais, e principalmente na cultura e na arte; que se esforçam todos os dias, há muitas décadas, a nos ensinar como é que devemos construir um mundo mais justo, real, inclusivo, diverso e respeitoso. E sim, não é fácil também aos pretos conviverem com tudo isso e não tomarem também posições preconceituosas em relação aos brancos. Sim, entre os negros, também existem aqueles que acabaram por desenvolver uma espécie de racismo – já que falamos de raças -; mas que – apesar de não ser o ideal – pois o preconceito não é nada bom, seja em que tema for -, é mais fácil de assimilarmos esta resposta a tantos anos de subjugação. Ainda que seja também absolutamente condenável; já que lutamos para que não exista nenhum tipo de racismo e preconceito, em nossas sociedades atuais.

Dito tudo isto, o espetáculo Para Meu Amigo Branco, com direção de Rodrigo França, leva à cena reflexões sobre o racismo estrutural brasileiro. Assinada por Rodrigo e Mery Delmond, a dramaturgia inédita é inspirada no livro homônimo do jornalista Manoel Soares e trata de um episódio de racismo entre crianças de uma escola. A menina Zuri, de 8 anos, é chamada pelo coleguinha de “negra fedorenta da cor de cocô”. Ao solicitar explicações à escola, o pai da menina, Monsueto (Reinaldo Júnior), descobre que o racismo sofrido por sua filha estava sendo tratado como “coisa de criança”, bullying.

Para meu Amigo Branco é um projeto mais do que obrigatório em ser visto, e por ser justamente um grande capítulo dessa necessidade que temos de entender de uma vez por todas que o mundo precisa mudar. Já passou do tempo em que ficávamos alheios a tudo isso, e jogando tudo para baixo do tapete. Acima, eu construí um painel que busca responder singelamente, duas das perguntas da peça: como se constrói um racista? Onde aprendemos a ser racistas? Ninguém nasce racista. Uma criança branca no jardim de infância ao se deparar com uma criança preta, não a tratará diferentemente por conta de sua cor. Assim como o amor, ninguém nasce amando e ninguém nasce odiando alguém. Tanto o amor, como o ódio são uma construção, um ensinamento. E sim, aprendemos a ser racistas nos lares brancos, nas escolas, no trabalho e em todo o nosso campo social. São em todos estes lugares que se constroem as narrativas que nos levam ao ódio. Por conta disso Para meu Amigo Branco, se passa em um ambiente escolar, justamente para nos reafirmar todos os erros de nossa educação em lidar com estes fatos. O princípio da vida é o ensinamento, é a cultura, é o aprendizado; e a escola deve ser um local onde todos são iguais, e onde todas as culturas devem ser ensinadas. E sabendo que ao ensinarem que existe o candomblé, o budismo, o islamismo, o kardecismo; entre outros credos e religiões, não quer dizer que a escola quer que alguém siga esta ou aquela cultura ou religião; mas sim para mostrar a diversidade do mundo; e em dar a liberdade de cada um escolher aquilo em que se acredita para a sua vida.

O texto de Manuel de Oliveira, base do espetáculo, e com dramaturgia de Rodrigo França e Mary Delmomd tem uma carpintaria muito bem construída, que nos leva a um crescendo na trama e apresentando reviravoltas cirúrgicas em todas as relações em cena: do pai preto com o pai branco, do pai preto com a diretora, do pai branco com a diretora, do pai branco com a bibliotecária e do pai preto com a bibliotecária. O que colabora assertivamente na desconstrução das incongruências e atitudes racistas do pai branco, que vão sendo descortinadas uma a uma; até chegarmos ao entendimento do quanto o racismo estrutural é enraizado, e normalizado, em todos os campos sociais, e principalmente na educação escolar.

A direção artística de Rodrigo França, seguindo a abordagem contundente que França costuma imprimir em seus projetos, escolheu nos apresentar um espaço cênico impactante – bem realizado por Clebson Prates- , de um branco absoluto e cintilante. Criando um excelente efeito de um mundo dominado imperativamente por brancos: tudo é branco: as carteiras, o piso, a lousa, e os inúmeros livros pendurados- mesmo que ainda toda a concepção cênica tenha como maior objetivo chocar, do que se utilizar dos materiais dispostos nela. Assim também como a boa ideia em colocar parte do publico sentados dentro da cena, nas carteiras, em sala de aula. Outro expediente de grande impacto, que porém fica no meio do caminho; pois mantêm esses espectadores privilegiados, tão passivos como os que estão na plateia. Seria bastante enriquecedor encontrar um bom caminho de tirar esses participantes de seu lugar de conforto, mesmo que estejam dentro da cena, e dar-lhes também, algum espaço de lugar de fala, e de interferência na construção da cena.

Os figurinos de Marah Silva são também muito bem escolhidos e confeccionados, nos colocando dentro de uma escola onde os alunos possuem um ótimo poder aquisitivo; e são distribuídos em paletas de cores brancas e em tons claros da diretora e do pai branco, ambos brancos, e de tom marrom, ocre e laranja nos figurinos da bibliotecária e do pai preto. A iluminação de Pedro Carneiro potencializa muito bem o branco da cena, e apresenta efeitos ricos, nos ótimos apartes sonoros – e trilha sonora original de Dani Nega -, e de expressões de desabafo das personagens, no bom trabalho de direção de movimento de Tainara Cerqueira. Sendo de grande importância também as ótimas participações da consultoria pedagógica de Clarissa Brito e da consultoria de representações raciais e de gênero de Deborah Medeiros.

O elenco tem uma atuação muito coesa, bastante firme e com desenhos bem definidos de interpretações: Reinaldo Junior como o pai preto apresenta um trabalho muito refinado e meticuloso na ótima construção de sua indignação perante a todo o ocorrido, e encontra um ótimo parceiro de cena em Alex Nader, como o pai branco, que igualmente constrói com minúcia a sua euforia, em seus primeiros momentos, para depois ir se colocando em um lugar mais realista. Stella Maria Rodrigues – atriz convidada – apresenta também um trabalho muito forte, delicado, e sensível, com ótimas nuances de firmeza, autoridade e reconhecimento aos fatos. Mery Delmond, também como atriz convidada, entra em cena para dividir o protagonismo preto no espetáculo, e apresentar fatos de grande relevância para a cena, e todo o contexto de discussão.

Para meu Amigo Branco é um projeto essencial em ser assistido por todos; e principalmente com um olhar bem atento e apurado aos espectadores brancos; que além de assistirem a um espetáculo que se passa em sala de aula de uma escola; vão encontrar de fato uma MasterClass completa, sobre como se viver em um mundo mais justo, equânime e belo por ser justamente diverso de representatividade.

Fotografia Afroafeto por Gabriella Maria

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