Não é por um simples acaso que governos que flertam com o autoritarismo, e a extrema-direita, queiram expurgar de seus mandatos todas as formas de expressão artística. A arte, justamente a arte, a verdadeira arte, está sempre na contramão, e no contrafluxo das normas que regem grande parte da ignorância, preconceito e negacionismo de uma sociedade.

Principalmente de uma sociedade composta pelos autointitulados “cidadãos de bem” e guardiões da moral, e bons costumes. Aqueles que têm todas as réguas para medirem o que é, e o que não é, o dito “normal” a eles. Em qual outro lugar, se não no teatro, pode-se ver tanta expressão de arte e a tradução de uma sociedade mais justa, mais empática, mais equânime, mais libertadora e sem amarras, do que em um delicado espetáculo teatral? É no teatro que podemos mergulhar fundo em assuntos tão essenciais de nossa existência: como corpos, desejos, escolhas, formas variadas de seres humanos, múltiplos em buscas, como qualquer um dos seres humanos.

O espetáculo Meu Corpo está Aqui, baseado em fatos reais vividos pelos protagonistas da peça, escrito – a partir de depoimentos ficcionalizados -, e dirigido por a Clara Kutner e Julia Spadaccini – também pessoa com deficiência – ; nos coloca diante de um encontro que já se fazia necessário há muitas décadas. Um encontro com um projeto que vai além da abordagem em se apresentar pessoas com deficiência (PCDs), que são tratadas tão somente como pessoas com deficiência. Sim. Claro que elas assim o são. Isso é fato. Fato também, é que não precisamos sempre abordar o único tema de que elas são diferentes e de que precisam ser enxergadas, e deixarem assim de serem invisíveis, apenas pelo fato de serem pessoas com deficiência.

Meu Corpo está Aqui é um dos espetáculos mais instigantes da temporada, principalmente pela ótima abordagem sobre corpos e desejos; sem distinção de raça, gênero ou deficiência. Afinal de contas todos nós temos algum corpo, todos nós temos algum tipo de sexualidade, todos nós temos algum tipo de desejo e de libido. E assim, desta forma, é que o espetáculo resolve contar histórias e experiências pessoais de Bruno Ramos – surdo não oralizado- , Haonê Thinar – pessoa amputada -, Juliana Caldas – pessoa com nanismo – e Pedro Fernandes- pessoa com paralisia cerebral, mas com cognitivo preservado e usuário de cadeira de rodas-; atrizes e atores PCDs (pessoas com deficiência), em que eles próprios estão em cena falando abertamente sobre seus relacionamentos, seus corpos, seus desejos.

O grande acerto do projeto é justamente o de aproximar toda a plateia, por aquilo que é objeto de desejo e curiosidade de todos os seres humanos: a sexualidade dos corpos e os atos sexuais em sua plenitude. Esse é um assunto que instiga a todos, sem exceção; pois na horizontal, ou entre quatro paredes, tudo se pode. Assim, apesar de que não podemos fugir de tocar no assunto de que estamos diante de PCDs; o espetáculo tem o mérito em buscar a naturalização dos corpos, dos anseios e dos desejos. O que nos leva a cenas de grande força e plasticidade; onde podemos citar como uma das mais bem construídas e antológicas, a cena do ato sexual realizado com imensa precisão e altíssima dose de criatividade e libido pelo intérprete Bruno Ramos; que vive as duas pessoas da relação; e eleva em nós altíssimos graus de testosterona.

Seguindo um roteiro de teatro documental-ficcional Meu Corpo Esta Aqui, consegue extrair muita humanidade e dignidade de cada uma das cenas. Todos têm bons momentos – como o desnudar de Pedro Fernandes, e a entrega determinada de Haonê Thinar -; e onde podemos destacar também a força e a potência de Juliana Caldas; que se agiganta nos palcos. Ela demonstra uma enorme maturidade e muito domínio cênico. Destaque também para a participação expressiva do intérprete de LIBRAS Jadson Abraão, que faz uma perfeita parceria com Bruno Ramos.

Em tempos de discussões inócuas sobre o verdadeiro ofício do ator, em dever ou não interpretar algumas personagens de gêneros diversos da dos seus intérpretes de origem, e os radicalismos infundados sobre o “lugar de fala” dos verdadeiros atores; O Meu Corpo Está Aqui, é um bem-vindo formato de teatro, que apresenta boas, e orgânicas temáticas sobre os PCDs. Dando-lhes possibilidades reais de ocuparem os seus espaços no universo artístico, com honestidade e determinação; sem precisar apontar dedos ou valer-se de vitimizações. A montagem opta em extrair arte genuína de cada um dos corpos, de cada uma das possibilidades que lhes é apresentada em material humano; e assim, podemos perceber através da busca da naturalização – o melhor dos caminhos -, que cada um é um, e o que temos de igual no mundo, é a verdade de que todos somos diferentes, em corpos e essências. E é justamente isso que nos iguala de fato!

Depois de uma bem-sucedida temporada no Teatro Gláucio Gill, e apresentações em Arenas Culturais, o espetáculo se apresenta agora no Teatro Municipal Domingos de Oliveira nos dias 14, 15, 16, 17 e 18 de dezembro de 2023 às 20h.

Fotografia Renato Mangolin

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