Não é uma tarefa das mais fáceis reencenar espetáculos que tiveram uma única montagem original, e que principalmente obtiveram sucesso e relevância, ao serem apresentados em suas épocas. Com estas premissas, podemos citar a atual montagem da peça A Cerimônia do Adeus do festejado autor Mauro Rasi (1949-2003). Rasi ao lado de Miguel Falabella, Hamilton Vaz Pereira, Vicente Pereira e outros autores, foi um dos precursores do gênero cômico conhecido como “besteirol”, que revolucionou o teatro brasileiro na virada dos anos 1970/80. O autor se consolidou de forma definitiva na cena e na história teatral brasileira com os seus famosos textos autobiográficos como A Cerimônia do Adeus, A Estrela do Lar e Pérola, onde trabalhou com Fernanda Montenegro, Marieta Severo, Vera Holtz, Suzana Vieira, Eliane Giardini, Nathalia Timberg, Sergio Britto, Sergio Mamberti, Otavio Augusto, entre outros. Além de ser cronista do jornal O Globo por anos e roteirista de programas como TV Pirata e Sai de Baixo. 

Depois de 35 anos, o diretor Ulysses Cruz, volta a dirigir uma versão da peça A Cerimônia do Adeus, em temporada no Teatro do Copacabana Palace- que completa neste ano o seu centenário. Na primeira montagem, em 1987, Cruz contou com um elenco estelar, entre eles: Yara Amaral como Aspázia, Nathália Timberg como Simone de Beauvoir, Fernando Peixoto, e Marcos Frota -, o que ajudou em grande parte a tornar esta montagem em um dos ótimos clássicos do teatro carioca. Devido a credibilidade do elenco, do Teatro dos Quatro – onde foi encenada a peça -, além de contar com uma linguagem diferenciada, em personificar o diálogo direto, e fictício, do jovem Juliano com os filósofos franceses do existencialismo Simone de Beauvoir (1908-1986) e Jean-Paul Sartre (1905-1980).

A peça conta a história do jovem Juliano refugiado em seu quarto, onde conversa com dois amigos imaginários: os escritores franceses existencialistas Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, representados por seus livros. Em interação permanente com ambos, o jovem tenta entender e enfrentar os desafios da despedida da adolescência: a relação problemática com sua mãe e o feminino; e a conturbada convivência com a família e amigos. Juliano experimenta seu desabrochar artístico como escritor e vive a afirmação da própria sexualidade, em meio ao provincianismo da cidade pequena onde vive, em plena ditadura militar.  

O Texto de Mauro Rasi reflete as buscas e os ideais de uma época onde os reflexos da ditadura militar ainda representavam um fantasma para as gerações mais velhas e um cerceamento de liberdade dos mais jovens. Tudo isso acontecendo em uma cidade conservadora do interior de São Paulo, e onde o jovem Juliano – alter-ego de Rasi – na flor de sua idade, vive os dilemas entre o ser ou o não ser um revolucionário – na luta entre o comunismo de Che Guevara, Cuba e Camus em confronto com o fascismo da extrema direita – , o ser ou não ser um existencialista, o ser ou não ser atraído pelo sexo feminino ou masculino; tudo isso no meio de uma relação familiar conturbada, e protagonizada pela sua mãe Aspazia. Buscando traduzir as dúvidas e questionamentos de Juliano, ainda que de forma esquemática, e simplista, pelas vozes, e pensamentos, dos grandes filósofos franceses; e evidenciando claramente assim a preferência do jovem pelo olhar feminino, na companhia cúmplice de Beauvoir. Uma existencialista e feminista, e que foi uma defensora ferrenha de questões como ética, política, situação, ambiguidade humana, alteridade, ação individual, liberdade, objetificação e opressão.

A importância de Simone de Beauvoir para Rasi é tão impressionante, que o nome do espetáculo é em referência a sua obra Cerimônia do Adeus. Cerimônia do Adeus, de Simone, relata, em sua primeira parte os últimos dez anos de sua vida com Sartre, antes de sua morte. Um relato tocante, onde corajosamente ela fala sobre o que sentiu, e como assistiu a despedida de seu companheiro de mais de 45 anos: a finitude da vida, a degradação do corpo, os seus problemas de esquecimentos e delírios. Sua cegueira, cansaço, crises, e medos. A segunda parte apresenta entrevistas com Sartre, sobre sua vida, ideias, livros, engajamento político, as mudanças que ocorreram, e que o fizeram em alguns pontos mudar ou ampliar os seus pensamentos.

A direção de Ulysses Cruz, para esta segunda montagem da mesma peça, apresenta uma cena mais caótica e frenética, e menos austera do que a alcançada na primeira montagem. O cenário também criado por Cruz parte de uma estética épica, com uso de portas viradas de frente para as coxias – em um entra e sai, sem fim, e nem sempre respeitando os limites espaciais traçados -, muitas projeções de vídeos; com isso acaba por fragmentar a encenação em muitas, e muitas camadas; e assim desviando o foco central da história, das construções inventivas do texto, e principalmente pelo esvaziamento da relação surreal de Juliano com os filósofos e sua mãe. Onde o tom de comédia rasgada é reforçado com tintas muito fortes, e prejudicando assim o enredo, algumas personagens, e algumas interpretações. A direção de movimento a cargo de Leonardo Bertholini, também não consegue organizar, com precisão, os corpos e os movimentos em cena. A iluminação de Nicolas Caratori, se vale de muitas luzes recortadas, com o uso excessivo de fumaça durante todo o espetáculo, e é por demais setorizada, utilizada mais em criar espaços de luzes pontuais, e deixando muitos partes da encenação com pouca luz. A trilha sonora original de André Abujamra é mais uma a colaborar com a atmosfera frenética da encenação.

Os destaques do espetáculo vão para as composições de Malu Galli como Aspázia. Galli emprega ótima dosagem entre a comédia, o drama, e o absurdo; alcançando grandes momentos de força, energia, perplexidade e sinceridade; e Beth Goulart – além de alcançar uma parecença física com a personagem (não sendo isso um critério obrigatório) -; tem uma atuação muito bem construída, em cada uma de suas intervenções, e representa com imensa força o universo e o pensamento de Simone de Beauvoir. Eucir de Souza constrói um Jean-Paul Sartre um tanto fanfarão e cria uma relação didática ao buscar sempre um olhar cúmplice da plateia. Lucas Lentini tem uma atuação mediana como Juliano, onde consegue explorar o lado mais selvagem da personagem e alcança muito pouco o lado humano, e todas as filigranas sobre as suas indagações filosóficas. Fernanda Viacava como Brunilde tem atuação discreta. Rafael de Bona como Lourenço, consegue transmitir com mais veracidade a sua trajetória, em antagonismo a Juliano. Fernando Moscardi como Francisquinho tem atuação pouco expressiva.

Crédito das Fotos: Diego Imai e Fernando Gonsales

 Serviço na Sessão Tijolinho Rio de Janeiro

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