Passados sete anos de desgraça absoluta para a cultura nacional, com direito a um tenebroso retorno à idade das trevas, e tendo no meio disso tudo uma trágica pandemia – liderada por um ignóbil genocida -, o teatro sempre foi, e é testado, como uma arte libertária, transgressora, de resistência, e que necessita estar sempre na contramão dos valores retrógrados, conservadores, excludentes e injustos de nossa sociedade. O teatro, como arte presencial, além de demonizado pelo anterior governo de plantão, ficou impossibilitado de acontecer por quase 2 anos. Foi a primeira categoria de trabalhadores a fechar e a última a abrir. Tudo isso foi determinante para que mais uma vez o teatro sofresse novas transformações, como o fato de passarmos a ter pequenas temporadas de um mês, e uma proliferação de monólogos. Uma forma mais rápida, direta, possível e viável de expressão de arte; para momentos de grandes dores e sofrimentos tão represados, em toda a área artística.

Assim nasceu Let´s Play That ou Vamos Brincar Daquilo, nesta nova cepa do teatro atual, que encontrou importante parceria dos Centro Cultural Banco do Brasil de Minas Gerais, Brasília – que receberá a peça em novembro e dezembro de 2024 -, e que ocupa nesse momento o Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro. A frente dessa empreitada temos um dos nomes mais arrojados e valentes da atual cena artística: Tuca Andrada. Assim como Torquato Neto, Tuca é nordestino, artista talentoso, valente, contundente e que não foge a luta de suas ideias, convicções e de seus posicionamentos políticos; e sem deixar jamais de esmorecer pelo falso linchamento público que lhe é atribuído por acéfalos, dementes, sejam eles em carne e osso, ou robôs.

Para este momento Tuca não poderia ter escolhido melhor do que recriar, e reviver, a vida e a obra do tropicalista, que decidiu sair de cena aos 28 anos de idade, sem publicar nenhuma obra, Torquato Neto (1944-1972) – a partir do livro “Torquatália” de Paulo Roberto Pires – , no ótimo formato de um espetáculo depoimento, um híbrido de celebração, poesia, relato, música e muito bom teatro. Torquato além de poeta, letrista e experimentador ligado à contracultura, era muito ativo na política como frequentador assíduo da UNE (União Nacional dos Estudantes); e estava dormindo na mesma, no dia 1o de abril de 1964, no 1o dia do Golpe Militar. Como jornalista, se consolidou com a sua polêmica coluna Geleia Geral no Jornal “A Última Hora”. Leitura obrigatória por todos aqueles ligados à música. Vociferava contra as más escolhas dos políticos pelo povo, e tinha ações contundentes com cantores, compositores e cartunistas. Colaborou com a explosão tropicalista, com músicas em parceria com Caetano Veloso: “Alegria, alegria”; e “Louvação”, “Geleia Geral e “Domingo no Parque”; ambas em parceria com Gilberto Gil.

O grande mérito do espetáculo Let´s Play That ou Vamos Brincar Daquilo, com direção de Tuca Andrada e Maria Paula Costa Rêgo é ser uma obra aberta, possibilitando ao Tuca Andrada uma inúmera gama de recursos para contar essa história de forma tão pungente e visceral. Um espaço semicircular, acolhedor, de ciranda e roda; que convida, assim como o ator, para ser circulada. Assim, Tuca, consegue brincar daquilo, conosco, junto com uma equipe harmônica e expressiva que transforma o ambiente cênico em um espaço lúdico e mágico; e transforma um banco em todos os objetos de cena, junto com poesias de Torquato espalhadas as centenas, pelo palco criado pela cenografia de Tuca Andrada e Maria Paula Costa Rêgo. A direção musical de Caio Cezar Sitonio, executada por ele mesmo e Pierre Leite, fazem arranjos delicados e minimalistas, que preenchem a sala de intervenções sonoras, e que são base para que Tuca cante de forma muito suave e autoral, as músicas com letras de Torquato: Louvação, Geleia geral, Mamãe coragem, Nenhuma dor e Let’s play that. Embaladas também de uma iluminação móvel, geométrica, retilínea e de grande volume e densidade, tão bem auxiliadas pela fumaça, de Caetano Vilela. Vilela consegue criar imagens muito fortes no uso de potentes refletores brancos, que hiperiluminam a cena, e que nos levam para outros patamares do universo, junto com a alternância abundante das cores em separado – o que causa um deslumbramento único -, e no uso deles em gama de arco-íris.

Em uma atuação orgânica, Tuca Andrada, brinca, pinta, borda, e convida a plateia para uma dança juntos. Ele nos emociona, por toda a sua intensa entrega, coragem e honestidade; em momentos contundentes quando afirma veementemente que, sim, foi um golpe, sim um golpe, um golpe em 1964 – no momento em que ele é muito ele mesmo, plenamente!!! Algo óbvio para a população informada e democrata, mas que nos dias de hoje, com o esfacelamento da inteligência e a abundância de escórias acéfalas do bolsonarismo, parecemos viver em um metaverso sinistro. Um dos momentos mais lúcidos e emocionantes do espetáculo é quando Tuca nos conta pela figura perplexa de Torquato que ao ser abordado na rua, como um ser esquisito, indaga de que o mundo realmente estava diferente. Que tempos são esses em que você não tinha a liberdade de ser quem você quer ser, seja no pensamento, seja na aparência, seja no seu modo de viver. Porque de todo esse patrulhamento?

Let´s Play That, nome de uma poesia de Torquato Neto, musicada por Jards Macalé, e traduzida livremente como Vamos Brincar Daquilo, instiga o público a opinar, criticar, ser livre para falar o que quiser; se reconstruindo em cada récita, o que dá vida e energia a um trabalho que é diferente e novo a cada dia, a cada encontro; e com isso, Tuca assim como Torquato, “com um sorriso entre os dentes, vai bicho, desafinar o coro dos contentes. Let´s Play That!!!!!!”

Fotografia Matheus José Maria

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