A estreia internacional do documentário, em longa-metragem, “Ney, à Flor da Pele” (2020/72`), de Felipe Nepomuceno, aconteceu no dia 28 de agosto às 19:00 no prestigiado Culturgest em Lisboa; dentro da Mostra/Secção IndieMusic do IndieLisboa 2021.  O IndieLisboa Festival Internacional de Cinema mostra essencialmente obras que se encontram fora do radar da regular circulação de filmes. Todos os anos, exibindo mais de 270 filmes, o IndieLisboa atrai público e profissionais de cinema de todo o mundo, dando-lhes a oportunidade de descobrir filmes recentes de talentos emergentes e redescobrir autores de renome. As secções do festival incluem ainda programas temáticos que promovem o debate sobre assuntos relevantes, com o objetivo de apresentar uma seleção conceitualmente e geograficamente diversificada.

“Ney, à Flor da Pele” foi apresentado na Mostra/Secção IndieMusic. A ligação entre o cinema e a música está no epicentro desta secção competitiva. Filmes sobre músicos e bandas de todo o mundo, mergulhando com frequência nos contextos históricos, políticos e sociais que acompanham as motivações musicais. E tudo isto junto traduz exatamente o que são os primeiros 3:25` do filme em questão. É impossível não sermos arrebatados com a interpretação impecável e visceral de Ney para “Ave Maria” diante de fortes e antológicas imagens, em preto e branco, de atos políticos, no Centro da Cidade do Rio de Janeiro, contra o regime de ditadura militar no Brasil, nos anos 60. Intercalados com imagens de Ney se maquiando para o grupo que o lançou “Secos e Molhados”. Imaginem a imensa comoção, perplexidade, suspensão e a falta de ar que tudo isso causou – principalmente ao público brasileiro presente. Foram minutos muito tensos e de sentimentos extremos de beleza e repúdio: a força da interpretação do Ney, a sua voz potente e única; e todo o contexto político em que se encontra o Brasil nos dias de hoje, onde o seu atual “Presidente” inunda o país com milhares de fake news – que insistem em dizer que no Brasil nunca houve uma ditadura; mas sim uma defesa heroica da pátria contra os inimigos vermelhos que queriam implantar no país o comunismo. Uma distorção histórica sem precedentes; que dá cabo em dizer inclusive que o nazismo era um movimento de esquerda. Um governo que nos ameaça diariamente por um novo golpe de estado, um governo autoritário, nebuloso, funesto e que busca destruir todas as nossas instituições democráticas, em busca de um poder autoritário. O diretor Felipe Nepomuceno foi cirúrgico ao dar voz a todos nós que estamos com estes nós nas gargantas – até por causa de uma nova ameaça de golpe no dia 7 de setembro próximo -, sem desviar em nada, da potente e deslumbrante trajetória do cantor Ney Matogrosso. Por esta primeira cena já sabíamos que estávamos diante de uma bela obra de cinema documental, e já podíamos nos preparar para o desdobramento a seguir.

Contando com uma equipe de primeira linha, ficamos impressionados com a qualidade da montagem de Paulo Henrique Fontenelle- diretor dos premiadíssimos “Mauro Shampoo”, “Loki”, “Dossiê Jango” e “Cássia Eller”-, e o som de Denilson Campos; que nos dão uma unidade espetacular de imagens e bandas sonoras diante de um material com captações de som e luz que parecem desafiar o tempo. Fazendo-nos acreditar que todos os clipes musicais poderiam ter sido gravados nos dias de hoje e nos suscitando o desejo em buscar os profissionais que conseguiram reproduzir todos esses sessenta anos de vida e obra; com tamanha perfeição cirúrgica.

Um filme absolutamente sensorial, imagético, musical; que nos enche de beleza os olhos e os ouvidos pelas sublimes interpretações de Ney para “Ave Maria” (Jayme Redondo/Vicente Paiva), “Sangue Latino” (João Ricardo /Paulinho Mendonça), “Caixinha de Música do João” (João Ricardo), “Flores Astrais” (João Ricardo /João Apolinário), “Mãe Preta” (Barco Negro)- (Piratini / Caco Velho / D Ferreira), “Mal Necessário” (Mauro Kwitko), “Tem gente com fome” (João Ricardo/Solano Trindade), “Tanto Amar” (Chico Buarque), “Viajante” (Thereza Tinoco), “Balada de um Louco” (Arnaldo Baptista / Rita Lee), “Rosa de Hiroshima” (Vinicius de Moraes / Gerson Conrad), “Imagine” (John Lennon/Yoko Ono), “Poema” (Cazuza / Roberto Frejat), “O Mundo é Um Moinho” (Cartola),  “As ilhas” (Geraldo Carneiro / Astor Piazzolla), “Como 2 e 2” (Caetano Veloso) e “Fala” (João Ricardo /Luli).

Ao nos apresentar a história do Ney, através dos seus clipes musicais inteiros, sem cortes, sem interferências; e sem ter que nos apresentar a sua vida em formato didático ou cartesiano, é o que faz deste filme uma verdadeira obra de arte de seus tempos vividos. Cada música simboliza um período de sua trajetória, cada letra de música conta a história do Ney e do Brasil, cada clipe conta a sua estética, o seu estado de alma, o seu posicionamento político e todo o seu lado maravilhosamente transgressor; sem rótulos. Ele não precisa dizer em texto tudo aquilo que já diz brilhantemente em música. Basta você olhar e ouvir o Ney interpretando com alma as suas músicas, para ver que se trata de um grande intérprete, de um ser livre, de um ser que queria ser o que quisesse. É claro que a sua rica vivência marca de forma icônica a androginia, a liberdade sexual, a homossexualidade, a liberdade de gêneros, a quebra de tabus, preconceitos, paradigmas; e que com certeza o seu cantar de voz aguda e o seu delicioso rebolar empoderou milhões de brasileiros.

A pouca interferência do homem Ney Matogrosso na narrativa do filme, através de programas de entrevistas- entremeados entre os clipes musicais -, é a medida exata encontrada por Nepomuceno, que nos dá assim pinceladas ao espectador sobre temas, assuntos chaves, frases e pistas de quem é esse ser tão camaleônico e sensacional. Vida plena esta que vemos Ney chegar aos seus oitenta anos e o seu vigor físico e intelectual parece de um homem na faixa dos cinquenta anos. Difícil para nós imaginar em que tempo Ney irá parar. Ele sabe muito bem viver e se conservar como um grande artista além do seu tempo. Ney é atemporal!

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