O espetáculo Gabriel só quer ser ele mesmo, da dramaturga Renata Mizahi, apresenta uma linguagem poética e delicada, ao tocar em um tema tão pertinente, e necessário, na nossa sociedade atual, como as convenções, e os estereótipos, sobre tudo aquilo o que é determinado pelos adultos, para as meninas e para os meninos. Inclusive, em tempos de recente obscurantismo, tivemos até o imenso desconforto em presenciarmos uma fala, absolutamente equivocada,- para se dizer o mínimo-, de uma dita “Ministra dos Direitos Humanos” que vaticinou em rede pública que: homens vestem azul e mulheres vestem rosa.
Assim, a encenação da peça a cargo também de Mizahi, junto com Priscila Vidca, tem todos os méritos, na proposição de uma discussão extremamente urgente sobre a hipermasculinização e hiperfeminilização, que precisa transbordar dos palcos para as casas, e das casas para as escolas; pois este assunto necessita de ser sequenciado, e dividido, entre todos os agentes da sociedade: avós, avôs, mães, pais, irmãs, irmãos, tios, tias, diretores, coordenadores, professoras e professores.
Sendo preciso lembrar sempre que o teatro é um painel, um grande mosaico da vida; e que não dá sozinho, conta dela toda! Um dos principais papéis do teatro é o de apresentar, motivar, discutir e fazer refletir sobre os mais variados assuntos e questões; sendo assim, já estava mais do que na hora de serem desenvolvidos muitos temas tão pertinentes sobre a questão de gênero, como vemos em Gabriel só quer ser ele Mesmo.
No espetáculo, que apresenta como sinopse: Gabriel é um menino de 8 anos que gosta de dançar, ao mesmo tempo em que joga futebol e toca rock, mas na escola onde estuda, não querem que ele faça aula de dança só porque é menino; todas as peças são jogadas no tabuleiro, de maneira suave, orgânica; onde conseguimos encaixar cada um dos fatos apresentados – a partir de uma festa de aniversário, que nos leva à flashbacks -, e sabendo exatamente quem são aqueles que dão voz às crianças, para agirem ou dizerem o que fazem e o que dizem. Nos fazendo lembrar também da importância primeira que significa a palavra “exemplo”. Como por exemplo usarmos uma expressão que está bastante em voga nos últimos anos – devido a imensa polarização -: ninguém nasce amando ou odiando alguém. Tanto o amor, quanto o ódio são a nós ensinados.
A maior virtude da educação, é aquela em que se baseia no bom exemplo; e não na repetição de atitudes, e gestos, que não dialogam mais com o bom senso e a liberdade de escolha de cada um de nós. É na infância, justamente, o período da construção do caráter e das “certezas” de cada um de nós. Certezas aquelas que também são mutáveis no decorrer de nossas vidas- ainda bem-; porque o pensamento é também movimento. Se neste momento, a sua criança já começa a apontar para um caminho diverso daquele que você acreditava ser o caminho dela; e você não tem essa percepção, ou não está aberto a entendê-la; já começa aí o sofrimento e o desencontro entre a alma e o corpo desses seres.
Por isso, como a peça nos mostra bem, o pensamento é próprio, pertence a cada indivíduo, ele não pode ser o reflexo do que as nossas mães e os nossos pais pensam. E a liberdade de escolha assistida é sempre o melhor caminho para que cada ser humano descubra por qual dos trilhos ele pretende seguir a sua trajetória. Este é o maior triunfo na importante escrita de Mizahi: a cirúrgica escolha da temática, e a grande delicadeza no seu desenvolvimento, em formato musical, que rendeu merecidamente à Renata Mizahi e Marcelo Rezende, o Prêmio CBTIJ de Melhor Música Original, em 2024.
E para nos contar essa bonita história, a direção de Mizahi e de Vidca, optaram por uma concepção alegórica, simples e objetiva. Assim, a cenógrafa Mina Quental utilizou-se de três mosaicos como composição cênica, além de pequenos praticáveis coloridos, que se apresentam multifuncionais: servindo de assentos, de praticáveis e até de instrumento musical. Os figurinos multicoloridos e despojados; de Flavio Souza se adequam as situações em que as cenas ocorrem: escola, casa, festa, entre outros. Assim, todo o espetáculo é conduzido com versatilidade e delicadeza pelas atrizes e atores, que representam vários papéis na trama, além de cantarem e tocarem também vários instrumentos, – guiados pela ótima direção musical de Marcelo Rezende-, como: violão, pandeiro, kazoo, escaleta, tambor grave, castanhola, agogô de côco, chocalho pequeno, ukulele e triângulo. Tudo isto composto, dá uma boa unidade de conjunto e harmonia, entre todas as interpretações.
Vinícius Teixeira como o menino Gabriel tem uma atuação muito segura e doce; que conduz a encenação com sinceridade, reflexão, leveza, e um canto suave; que dá um ótimo contraponto ao lidar com um tema tão delicado. Aline Carrocino como Bia e a coordenadora tem atuação segura, Clara Santhana como Yasmim, funcionária Lúcia e tia Flavinha, tira bom proveito da comicidade e da doçura, Julia Ludolf como Cristal e Mãe tem atuação assertiva e delicada, Marcos França como Beto se sai muito bem como o amigo da escola, que se apresenta como um repetidor de padrões retrógrados, claramente dando voz equivocada aos pensamentos dos vossos pais e Udyle Procópio se sai bem nos seus múltiplos papéis: professor Luiz, professor Marcelo e Betão.
O espetáculo que fica apenas duas semanas em cartaz no Eco Villa Ri Happy – dentro do Jardim Botânico -, de 15 de março de 2025 à 23 de março de 2025, sempre às 16h, e que já roda pelo país há 05 anos, merece ser visto e ter vida longuíssima, pois retrata um importante espelho de uma época no mundo, e principalmente no Brasil, que irá modificar o nosso pensamento para sempre, em questões pertinentes ao gênero. Que todos saiam do teatro querendo ser o que quiserem; assim como Gabriel, sempre o quis!
Fotografia: Dalton Valério