Ao chegar no Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto, para assistir a estreia de Furacão– espetáculo comemorativo de 25 anos do Amok Teatro -, com texto do premiado escritor francês Laurent Gaudé -, pude perceber que oitenta por cento da plateia presente no saguão do teatro eram de pessoas pretas. Neste mesmo tempo me veio ao pensamento uma parte das experiências vividas pelo Teatro Experimental do Negro – TEN – fundado em 1944 por Abdias do Nascimento (1914-2011). Apesar do seu essencial trabalho na exaltação e reconhecimento do legado cultural e humano do africano no Brasil; e em dar visibilidade, nos palcos cariocas, aos talentos pretos da época,- que sofriam na carne a escassez de trabalho, e o preconceito de cor, ainda gravemente ameaçado pelo deplorável expediente do Blackface (atores e atrizes brancas que se pintavam com tinta preta); o TEN acabou sendo taxado como um teatro que fazia espetáculos encenados por pretos que era assistido apenas por uma plateia de brancos. E assim, qual não foi a minha satisfação em ver que neste momento da nossa história, que a luta deles não foi em vão! Hoje, já se é possível avançarmos nessa realidade: vermos um teatro com o protagonismo preto, e que é visto também por uma maioria de espectadores pretos. E que isso não seja apenas o reflexo de uma estreia para convidados, mas sim uma prática que precisa ser amplamente cultivada: o lugar do espectador preto nas salas teatrais.

Já no primeiro minuto de peça, nos deparamos com uma explosão avassaladora de talento, e de força da natureza, que é a família Aleixo! Abrindo a primeira cena da peça, vemos estupefatos, a cantora/atriz Taty Aleixo nos hipnotizar desde os primeiros acordes musicais, com os seus primeiros sussurros em boca chiusa, para a sua interpretação com absoluta maestria da canção Pussycat Moan, de Katie Webster. Taty nos apresenta uma atuação potente em tom, tempo, dinâmica, fraseado impecável e articulação perfeita; acompanhada pelos ótimos músicos, Rudá Brauns e Anderson Ribeiro; que são responsáveis também pela excelente criação e produção musical. A interpretação musical magnífica de Taty Aleixo já nos transporta imediatamente para o ambiente cênico-musical da Preservation Hall Jazz Band – uma pequena casa de jazz em Nova Orleans que apresenta shows intimistas e acústicos da banda com o mesmo nome -, e local que inspirou a diretora Ana Teixeira que por lá esteve por repetidas vezes.

Taty Aleixo, uma cantora preta, de potência vocal descomunal, abre os serviços do espetáculo nos dizendo a que veio esse novo projeto do Amok Teatro, e preparando assim o terreno para recebermos mais um furação avassalador da família Aleixo, sua mãe Sirlea, que interpreta a protagonista Joséphine Linc Steelson, com o suporte de uma concepção cenográfica simples e funcional, que tem como elemento principal uma cadeira, e algumas paredes de madeira em uma sugerida casa simples, concebida por Ana Teixeira e Stephane Brodt.

Assim, se valendo de uma cena quase nua, Brodt e Teixeira na direção, deixam todo o espaço para a interpretação excepcional de Sirlea Aleixo. Aleixo consegue tomar conta de toda a cena, e nos deixar entorpecidos pela sua meticulosa e milimétrica composição de Joséphine Linc Steelson – uma velha preta de quase cem anos, e que varre a cena na categoria 3 da escala de furacões de Saffir-Simpson, em terra firme. Todo o espetáculo é costurado por fabulosas canções – pela refinadíssima direção musical de Stephane Brodt – interpretadas por Taty Aleixo, como O Death, de Ralph Stanley, Hard Times Killing Floor Blues, de Chris Thomas King e Strange Fruit, de Abel Meeropol; ficamos nos perguntando: quem são esses dois furacões que nos magnetizam e nos prendem o olhar, a respiração, o coração e o pensamento? De onde é que elas saíram? O que elas já fizeram em suas trajetórias artísticas, e o que elas vão fazer a seguir? Elas são dois fenômenos impressionantes da arte cênica mais pura e genuína: uma no canto absoluto e a outra na interpretação orgânica. O fechamento do espetáculo com Taty Aleixo interpretando Strange Fruit – canção imortalizada pela magistral Billie Holliday – e que condena o racismo americano, especialmente o linchamento de afro-americanos que ocorreu principalmente no sul dos EUA; é antológica!

O espetáculo Furacão coloca em cena mais essa poderosíssima personagem feminina – de tantas que o Amok já visitou -, que é dividida entre mãe e filha, em fase mais jovem e mais velha. Personagem que representa a comunidade negra dos bairros pobres de Nova Orleans, diante da violência do furacão Katrina, que devastou o sul dos Estados Unidos, em 2005, Ao mesmo tempo em que Joséphine Linc Steelson é um furacão, ela está também no olho deste furacão Katrina, enfrentando a fúria da natureza, e o desamparo humano do esquecimento dos desvalidos, que a faz lutar bravamente para se manter de pé, devastada em luta pela sua sobrevivência. Em uma composição de personagem fisicamente aplicadíssima, que trabalha na corda bamba entre o equilíbrio e o desequilíbrio, de um corpo desgastado de seus quase cem anos, mas que apresenta uma força e uma potência animalesca e extraordinária; e uma dignidade ímpar ao soletrar o seu nome inteiro e em sílabas fortíssimas. Uma das marcas de sua grande atuação. Merecendo também um destaque muito especial a construção sonora de tempestade e furacão, que nos enlaça em sensações físicas, e aumenta em muitos decibéis a ambiência de tensão, já extremamente bem representada pela fisicalidade de Sirleia Aleixo; assim como a luz grave e de tons soturnos do ótimo Renato Machado.

O Amok Teatro é reconhecido pelo seu trabalho meticuloso, e bem orquestrado, na construção de personagens de grande força e expressão; aliado a realidades – geralmente de países com conflitos internos na África (Moçambique), Ásia (mundo árabe, Afeganistão, Israel e Palestina) e Europa (Iugoslávia). Dialogando fortemente com os conceitos do encenador polonês Jerzy Grotowski, no que tange a fisicalidade e corporalidade, tirando os atores de suas zonas de atuação de conforto e os levando a explorarem de forma laico-ritualística, todas as possibilidades de seus corpos cênicos artísticos, suas caixas torácicas, e aparelhos fonadores.

A opção da escolha dos temas do espetáculo são de extrema urgência, e descortinam a trágica realidade do país mais rico do mundo: os EUA; que é ao mesmo tempo um dos mais segregadores, racistas e o maior produtor de gases do efeito estufa do mundo, ao lado da China; e que colabora diretamente assim com a produção de fenômenos trágicos da natureza e que fornece a destruição desordenada do planeta, pelo anômalo clima mundial. Estando também em consonância com os assuntos que estão nas principais pautas, e agendas de um Brasil que por muitas décadas negligenciou também o lugar dos pretos no protagonismo da cena; e os mantiveram também em um lugar de segunda classe nas artes cênicas. Onde poucos, ou quase nenhum, tinham algum lugar de destaque ou muito menos de protagonismo. Nessa guerra velada entre as raças no Brasil – antes de vir à tona que o Brasil na verdade é um dos países mais racistas do mundo (quem sabe o segundo maior, depois possivelmente dos EUA); espetáculos como Furação ajudam a reposicionar o papel dos intérpretes pretos dentro, e fora da cena teatral carioca.

Assim, o Amok Teatro marca um tento inestimável em sua carreira, em comemorar os seus 25 anos de trajetória de muito sucesso, dando o protagonismo absoluto as excepcionais artistas da família Aleixo. Já esperávamos encontrar mais um ótimo espetáculo com a grife de excelência desta renomada cia, entretanto, o que acontece nas tábuas deste teatro, nos arrebata e só nos faz agradecer a generosidade de Ana Teixeira e Stephane Brodt, em abrirem verdadeiramente, todos os seus espaços e caminhos para fazerem essas duas artistas brilharem! Tudo o que fizermos, ainda será pouco, muito pouco, para reparamos a imensa dívida secular de crueldade e desumanidade que foi feita, e ainda é feita, aos pretos em nossa história; porém o Amok Teatro, com a encenação de Furacão, dá um grande passo de contribuição ao colocar no lugar certo da história do teatro brasileiro, estas duas mulheres de talentos raros, que reluzem plenamente em todo o vosso esplendor, e nos deixam de joelhos em agradecimento!

Foto Sabrina Paz

Serviço na Sessão Tijolinho Rio de Janeiro

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