Muitas vezes parece difícil de se entender os movimentos que regem as criações artísticos-teatrais, e todas as suas nuances em formas, gêneros, conteúdos, estéticas e conceitos. Porém, como em todos os ofícios, o teatro também sofre de movimentos em série, e que podem ser classificados como tendências e modismos. Infelizmente, também para o teatro, é muito difícil ficar imune a esta relação de um produto de sucesso ser logo replicado por outros artistas, diretores, grupos, cias, entre outros. E é isso que acaba por transformar os nossos palcos, por diversas vezes, em uma profusão de peças que parecem repetir fórmulas de sucesso instantâneo, e que acabam por se alongar em nosso cenário teatral.

Sim, e essas tendências, que acabam por uniformizar as nossas artes cênicas, vêm completamente na contramão daquilo que se espera das artes, que é a diversidade, a criação exclusiva, o ineditismo, as experimentações novas, os conceitos próprios de cada artista, cada cia, cada grupo; ou seja, a marca, a grife que cada um dos indivíduos ou coletivos imprimem em seu trabalho. Dito isto, não tem sido incomum vermos trabalhos não tão diferenciados, uns dos outros, nos dias de hoje.

Nesta última década o teatro carioca virou quase que uma amostra permanente de peças classificadas de teatro-documentário. Por conta disso, tudo e qualquer coisa passou a entrar nesse contexto, e assim textos, livros, personalidades e assuntos, passaram a ser fonte principal de inspiração para ser documentada em nossos palcos. Depois da pandemia passamos a ver também o crescimento exponencial de uma nova forma do fazer: o teatro do “Eu” – da autoficção -, que é quase sempre somado ao já teatro documentado. Ou seja, o teatro do “eu autoficcional” + o documentado”.

Assim, neste momento, o teatro atual, parece começar a dar ares de uma nova tendência, que é a de apresentar temáticas pertinentes ao próprio fazer teatral, e utilizando para este intento a sala de ensaios e a preparação que antecede a criação, o estudo, e o desenvolvimento de um espetáculo. Entre eles, e que felizmente deu um passo adiante nessa concepção do fazer teatral, podemos destacar o espetáculo Nebulosa de Baco, de Marcos Damaceno e criação da Cia Stavis-Damaceno, que inaugurou o novo Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro. Com texto atribuído a Marcos Damaceno, o espetáculo nos coloca, como o já dito, em uma sala de ensaios, onde uma atriz (interpretada por Rosana Stavis, com absoluta autoridade) auxilia a outra atriz (interpretada por Helena de Jorge Portela, em boa atuação) a ensaiar. Um dos grandes méritos do espetáculo de Damaceno é justamente o de aliar um ótimo texto, que discute profundamente questões pertinentes a atuação das atrizes-estrelas; e as diversas opções que devemos tomar na hora de atuar, e de construir um papel; principalmente em um texto que fala da relação conturba, conflituosa e complexa entre uma filha e o seu pai; e ainda mais pela adição da dúvida de que esse texto seja apenas ficcional ou também autoficcional.

Aí, reside de fato a inteligência artística de todo o espetáculo; e que o potencializa a ser uma encenação diferenciada; que ajuda a colocar justamente em xeque alguns dos conceitos mau usados em nosso universo artístico, como: até que ponto um texto autoficcional é totalmente fiel aos fatos vividos em sua vida real? Até que ponto o primeiro julgamento é aquele que traz a verdade absoluta dos fatos? Será que a vítima que vive ou narra o seu sofrimento, será sempre a vítima de forma inconteste, de um abuso? E tudo isso com o planejamento e a engenhosidade cênica de nos apresentar essa discussão entre duas personagens atrizes, e não entre um diretor e uma atriz. E ao mesmo tempo não haver também nenhuma tendência para qual lado puxar. Não se trata jamais de descredibilizar a mulher, pois o fato há; mas quem o realizou?

Todos os elementos que compõe a encenação são harmônicos para uma vivência em uma sala de ensaios. Os figurinos e cenários de Damaceno, que são despojados na atriz em ensaio, e que auxiliam em diversas composições e formas, no ensaio da outra atriz, onde o visagismo de Claudinei Hidalgo ficam mais evidentes. Assim como todos os elementos pertinentes na composição de uma sala de ensaios: texto, palco, espelhos, mesa de luz, lanche, mesas, cadeiras, araras, água, café, maça, entre tantos. A iluminação de Beto Bruel e Ana Luiza Molinari de Simoni é também simples e despojada, e se divide na brincadeira entre quem manipula ou não a mesa de luz: as atrizes ou o operador de luz Rodrigo Lopes.

O espetáculo Nebulosa de Baco (local onde é atribuído ao nascimento das estrelas) é absolutamente instigante, ainda mais por apresentar em sua composição, ações muito caras à nós atores: como criar uma personagem com fé cênica? É preciso usar figurinos? Perucas? Sala escura? Focos de luz? Música? Adereços e cenografia, para o ato cênico acontecer? É preciso seguir um ritual imenso para se começar uma cena? Ficar preciosos minutos esperando algo chegar ou um espírito baixar? Pode a atriz criticar a sua personagem? A atriz atua ou milita em causa própria? É teatro ou é palanque? E o choro? Precisamos chorar de verdade ou de mentira? As lágrimas verdadeiras produzem um choro de verdade? Podemos produzir lágrimas verdadeiras e o choro ser de mentira? O que é de mentira e o que é de verdade? O que é mentira e o que é verdade, no universo da atuação artística? Devemos entrar em cena com o cérebro em evidencia, ou com a emoção em primeiro plano? Ou como diz perfeitamente a atriz: “atriz que é atriz vai lá e faz, entra em cena e arrasa! Vai fia ARRASA”. Simples assim.

Foto Renato Mangolin

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