A Boto-Vermelho, que completa em 2024 seus 30 anos de atuação, a cada encenação de um novo espetáculo nos apresenta uma vasta gama de recursos técnicos e artísticos, para nos narrar novas histórias. Uma marca registrada da Boto, que busca sempre temas e soluções originais e inéditas para as suas concepções de montagem. Em João por um Fio, de autoria de Roger Mello (principal dramaturgo da Boto até o presente momento e vencedor do NOBEL de Literatura Infantojuvenil- Prêmio Hans Christian Andersen 2014), o encenador Ricardo Schöpke realiza o seu primeiro espetáculo solo, e parece ter buscado para isso também um retorno ao seu teatro mais acrobático que marcou as suas performances nos seus premiadíssimos espetáculos Uma História de Boto-Vermelho e Curupira. Sendo uma grata surpresa para nós vivenciarmos ainda o seu domínio maduro no ótimo trabalho corporal realizado por Schöpke.

Partindo do livro homônimo de mesmo nome – e o mais traduzido de Roger em todo o mundo -, João por um Fio conta a história de um menino solitário, órfão de mãe e de pai, que é rendeiro e pescador, assim como eram os seus pais, e que vive enredado de fios. A ação da peça se passa no período de uma noite, onde vemos o menino com dificuldades para dormir; e que vive até o amanhecer experiências intensas em um mundo de aventuras fantásticas. João, fixado pelos seus fios, vive no limite em seu mundo imaginário, em um cubo de fios, em uma cama em várias camadas de fantasia (lago, sombras e cama elástica), fios de renda com sua avó Chola (indígena boliviana) e seus painéis de desenhos. Destaque ao belo e funcional cenário, criado por Schöpke, que nos transporta para muitos universos lúdicos e oníricos.

Toda a encenação é muito bem cuidada e conta com uma ficha técnica de profissionais gabaritados no cenário teatral do Rio de Janeiro. A direção de movimento de Sueli Guerra dá um amplo suporte no desenvolvimento corporal e atlético, de todas as partituras cênicas executadas com precisão por Schöpke. Marcio Nascimento, como responsável pela direção de animação, imprime movimentos que colaboram com a magia da manipulação de um corpo cênico híbrido, que flutua pela cena. A trilha sonora minimalista, e intimista, de Daniel Belquer, rege toda a partitura corporal de Schöpke, onde cada um de seus movimentos e gestos, são pontuados por frases, melodias ou comentários sonoros. A vídeo-projeção de Daniel Belquer e Alexandre Bräutigam colabora com a criação de mundos fantásticos, e simbólicos, e se encaixa perfeitamente na veia cinematográfica de Schöpke, que narra em telas, cada uma das cenas vividas. Os figurinos de Leo Thurler são de bom gosto, buscam justaposição de peças e apresenta lindos detalhes em bordados inspirados por imagens do livro, e na delicadeza das florezinhas do chale da Vó Chola.

O grande destaque do espetáculo é a atuação impecável e arrebatadora de Ricardo Schöpke, que dá vida a personagem João, um menino neurodivergente que está dentro do espectro de Asperger, e retrata assim o seu mundo particular e as suas sensações mais internas. O trabalho de Schöpke é de grande sensibilidade, e de minúcias gestuais, e de comportamento, que constrói através de pouco texto, e com teatro físico, acrobacias, dança contemporânea, manipulação de teatro de sombras e boneca híbrida. João por um Fio é um excelente espetáculo, que trata de um tema complexo, e que merece ser visto com os olhos bem atentos, e o coração aberto, pois foge de uma encenação trivial e clássica; onde imagens, quadros estéticos, e sonoros, preenchem lacunas pouco experimentadas por nós.

Fotografia Luisa Peres

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