Uma sala de cinema na Cinelândia, fechada e aparentemente abandonada, guarda histórias desmedidas e instigantes de corpos que encontraram ali um espaço para satisfazer seus desejos amorosos, afetivos e sexuais em meados dos anos 90. A performance Cinema Orly, com direção de Diogo Liberano, a partir do livro homônimo de Luís Capucho, acompanha um homem atravessado por vozes e imagens vividas nesse ambiente, frequentado por figuras socialmente marginalizadas, alvo de preconceitos e caricaturas. Homossexuais, bissexuais, travestis, transgêneros e quem mais não se identificava com as formas normatizadas de gênero e sexo encontraram um refúgio no Cinema Orly, que exibia filmes pornográficos diariamente.

Com dramaturgia de Gustavo Colombini e atuação de Teo Pasquini, a performance estreia no dia 5 de outubro de 2023, no Teatro Glaucio Gill, e segue em cartaz até o dia 27, com sessões às quintas e sextas-feiras, sempre às 20h. De 02 a 05 de novembro, de quinta a domingo, as apresentações serão no Teatro Dulcina (no mesmo edifício que abriga o Orly em seu subsolo), com sessões quinta e sexta, às 19h, sábado, às 15h e às 19h, e domingo, às 15h e 18h. Ambas as temporadas contarão com sessões acessíveis com tradução em LIBRAS. Cinema Orly foi contemplado no edital Fomento à Cultura Carioca – FOCA, da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, através da Secretaria Municipal de Cultura. O Teatro Glaucio Gill é um espaço da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa/FUNARJ.

Na performance, o ator Teo Pasquini coloca em tensão desejos e morais, experiências de amor e sexo, mesclando biografias e ficções para celebrar a vida de um homem gay para além de qualquer norma que tentaria enquadrá-la”, define o diretor Diogo Liberano. “Esse homem é habitado pelas vozes do Orly, pelas histórias de Luís Capucho, por suas histórias pessoais, pelos seus próprios estudos sobre o tema, suas próprias obsessões. Uma figura que é uma zona de contato entre palavra e desejo; desejo e corpo; corpo e palavra. A dramaturgia de ‘Cinema Orly’ tenta perseguir essa sobreposição de corpos, desejos, palavras. Quer aliar filosofia e pornografia, erotismo e contação de história, acrescenta o dramaturgo Gustavo Colombini.

O projeto teve início com o encontro de Teo Pasquini com o autor, cantor, compositor e pintor Luís Capucho numa festa, quando manifestou o desejo de ler o romance “Cinema Orly”, já então com edições esgotadas. O escritor, no entanto, tinha um exemplar na mochila, que foi imediatamente comprado e lido por Pasquini no dia seguinte. Só não li de uma tacada só porque queria economizar”, lembra o ator. “O livro me trouxe uma nova perspectiva do imaginário erótico e pornográfico: um viés antropológico. E o viés físico, geográfico e arquitetônico do espaço cinema. Eu vi que tinha potencial para um espetáculo teatral de imediato, por ser narrado em primeira pessoa, com um viés muito autobiográfico, num tom de diário. Ele parte de episódios pornográficos e eróticos para falar também sobre amor, solidão, fragilidade, da busca pela criação de relações e raízes do mundo, analisa o ator e idealizador da performance.

O dramaturgo Gustavo Colombini explica que a dramaturgia criada para a performance não é uma adaptação do livro de Capucho, mas um desdobramento da obra, um diálogo da equipe com aquelas narrativas. “Foi a partir desse ângulo, como parceria, que o romance abriu novos caminhos de invenção da dramaturgia. É um livro cru, direto, abusado, no mais desejoso dos sentidos. Sua existência é preciosa como documento histórico, faz parte da história do Rio de Janeiro, do Brasil. Estudá-lo foi sobretudo descobrir o que ele diz sem dizer, o que ele esconde, investigar o papel que o corpo desempenha nessa leitura, o contexto social, político, histórico em que ele foi escrito, por quem ele foi escrito, por que foi escrito desse jeito etc. Então, fazemos um trabalho artístico e crítico que nasce do nosso encontro com o livro Cinema Orly e dos nossos estudos dele”, explica Colombini.

Essa mistura entre vida e ficção fez com que, durante o processo, a encenação de Liberano investigasse a divisão da plateia em duas. “Cinema Orly acontecerá simultaneamente de duas maneiras: uma parte da plateia estará com o ator sobre o palco, assistindo à performance na proximidade do seu corpo; e a outra parte estará na plateia original do teatro, diante de uma cortina fechada e será convidada a escutar a performance enquanto projeta as suas imagens em pensamento e imaginação. Uma ‘plateia-corpo’, por assim dizer, e uma ‘plateia-projeção’”, propõe o diretor. Essa investigação acentua as inúmeras dualidades que perpassam a performance, desde o ato de narrar e o ato de viver, até a separação entre corpo e ideia.

A performance também desempenha um importante papel de impedir que o Cinema Orly (aberto em 1935 como Cine Teatro Rio e fechado em 2013) e as experiências e histórias vividas nele sejam esquecidos pela sociedade. A proposta de encenação partiu apenas não daquilo que o livro de Capucho apresenta, como também da dimensão factual do Cinema Orly hoje em dia: uma sala de cinema que se encontra fechada, abandonada e preenchida por restos e ruínas, poeira e pedaços de seu antigo mobiliário. Contar essa história teatralmente é um modo de atrapalhar e atrasar o seu esquecimento e apagamento. Nesse sentido, estrear Cinema Orly é também um ato de publicação, um ato que visa tornar público alguma vida que ali foi vivida, completa o diretor Diogo Liberano.

Fotogarfia Thaís Grechi

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *