“A mais incondicional amizade”, eis a definição mais simples para o relacionamento entre homens e cães – ou melhor, eis a melhor definição do amor de um cão por um humano, porque o oposto nunca é tão verdadeiro assim. Sim, é hora de falarmos um pouco desta longa e profunda afeição que uniu estas duas espécies – algo tão inusitado e singular na natureza que em nada se compara a qualquer outra relação que o homem estabeleceu (ainda que não possamos esquecer dos gatos, que também se afeiçoaram tanto aos humanos, a despeito dos tolos e arraigados preconceitos que existem sobre eles em função de sua natureza mais independente). Mas, é claro, no caso do cachorro trata-se mesmo de uma parceria milenar, que se deu de um modo muito espontâneo e antes mesmo da própria humanidade “escrever” a sua história. Sem dúvida, não se trata inicialmente do cão que hoje conhecemos, mas de seus ancestrais selvagens (lobos, chacais, enfim, daqueles que estão na origem deste nosso grande companheiro de vida, por mais terrível que possamos considerar a domesticação dos animais para atender a fins absolutamente humanos).

Bem, foi ainda vivendo no que se convencionou chamar de “estado primitivo” que o homem conheceu os cães e pôde contar com suas qualidades superiores (tais como o faro apurado, a velocidade, a dedicação ao trabalho e, sobretudo, a sua imensa capacidade de afeto e amizade), oferecendo-lhes, em troca de sua colaboração, a segurança contra os predadores, alimento e abrigo. Sim, trata-se inicialmente de uma relação de troca, um afeto alegre (no sentido mais espinosista do termo, ou seja, como algo que aumenta a força e o poder de existir de ambos) e não uma mera questão de interesse, no sentido mais pejorativo deste termo. Não, não era, ou não era apenas, uma troca de favores materiais; era algo muito mais potencializador (sobretudo, para o humano), pois, sem dúvida, nestes tempos imemoriais, a nossa espécie tinha muitas fragilidades – quando comparada a outros animais – e a companhia do cão deve ter sido, para ele, sobretu-do, um reforço extraordinário para a sua sobrevivência. Mas, e quanto aos cães? Quais seriam exatamente os seus sentimentos em tudo isso?

Trata-se realmente de uma pergunta das mais difíceis, já que sua própria formulação depende de uma constatação que nem todos consideram: a de que os cães, e os animais, em geral, têm sentimentos, emoções – e não só isso, cada vez mais a ciência e, sobretudo, a neurociência, nos dão provas de que eles têm sensações, impressões, memória, tudo o que diz respeito à capacidade de aprender, de conhecer o seu meio, de elaborar suas experiências. Se, por acaso, estes atos são mais limitados neles do que em nós, a quem interessa este juízo antropocêntrico? Seja lá como for, é fato que a relação do homem com os animais que lhe são próximos ainda demonstra que, na prática, o que prevalece é a visão mecanicista monstruosa do filósofo francês René Descartes que, no século XVII, formulou a tese de que o animal não passava de uma “máquina sem alma”, um puro mecanismo, um autômato destituído de sentimentos, emoções, incapaz de sentir dor, alegria, etc. (ideia que o grande Voltaire, no século seguinte, rebate com muita ênfase em seu Dicionário filosófico).]

É claro que a simples convivência cotidiana com os animais basta para nos convencer de que esta visão é absolutamente falsa e até mesmo criminosa, por tudo o que gerou de prejuízo e mal-estar até hoje na vida deles. Mesmo que colocássemos a razão como parâmetro, como a medida que nos separa dos animais (embora saibamos bem hoje que também eles possuem raciocínios e conhecem o mundo à sua volta, da forma que podem e necessitam), a verdade é que nem mesmo a falta de uma linguagem mais complexa os impediu jamais de se organizarem em grupos, de se comunicarem entre eles, ou mesmo de sentirem a perda de seus companheiros. E falando nos cães, especificamente, não falar nunca os impediu de ser afeiçoar tão visceralmente a nós. Não, não é a razão que proporciona o desenvolvimento da consciência, mas, sim, a senciência, a capacidade de ter emoções. A linguagem e a razão apenas a ampliam a consciência, como nos mostra hoje os belos livros dou neurocientista português Antônio Damásio.

Foi pensando em muitas destas questões e, principalmente, se colocando contrário à visão fria e mecanicista dos animais, que Jeffrey Moussaieff Masson escreveu o livro Cães não mentem quando amam. Ex-professor de sânscrito e renomado psicanalista (pelo menos, antes das duras críticas que fez a Freud, com sua consequente expulsão da direção dos Arquivos Freud), Masson dedicou-se durante muitos anos à etologia (ciência do comportamento animal), tendo publicado também o belíssimo livro Quando os elefantes choram. Objetivando esclarecer como funciona a “psique” canina, Masson mostra de que maneira os cães sentem e vivenciam as suas experiências, como eles se comportam diante dos mais variados estímulos e como são capazes dos atos mais heroicos por aqueles que nem sempre lhes dão o afeto que eles merecem.

Muitos homens ainda desconfiam do cão; julgam-no incapaz de ser um amigo fiel, de ter sentimentos sinceros e de amar realmente algo além de si próprio, mas estes parecem estar falando mais sobre si mesmos do que sobre os cachorros. Afinal, como nos mostra Masson, os cães, até por não possuírem uma inteligência dita tão “sofisticada” quanto a nossa, que lhes permitiriam assumirem diversos papéis, conforme as circunstâncias e os interesses (e isso não é exatamente um elogio) são, por isso mesmo incapazes de fingir sentimentos e emoções. Talvez seja exatamente isso que assuste tanto alguns humanos: a espontaneidade, a simplicidade, a potência do animal, que se entrega tão fortemente ao seu presente quanto se entrega a relação com os humanos.

Em suma, basta conviver com qualquer cachorro para não se ter mais dúvidas de que ele é, de fato, o nosso grande amigo e companheiro. E, para além de tudo, é por ser um animal de bando, ou seja, que já vivia naturalmente em grupo, que o cão se inseriu tão bem na família humana como em uma nova matilha, sentindo-se inexoravelmente unido a ela e a qual protege incansavelmente. De fato, ele se apega mais a um do que a outros na nova família e este será, para ele, o seu alfa, o alfa do seu grupo.
Trata-se, para o cão, de uma relação muito profunda e essencial, e que quase nunca atinge este mesmo grau no homem. Certamente, o mais comum é vermos cachorros serem tratados de um modo ou excessivamente infantil ou apenas para fins utilitários, isto é, nos dois casos quase nunca se leva realmente em conta as necessidades e os interesses próprios destes seres tão extraordinários, fazendo-os viver apenas em função de nós mesmos e de nossos fins. Honestamente falando, é preciso dizer que o cão tem mais a ensinar ao homem sobre amizade e fidelidade do que o contrário.

Por fim, invertendo os dados da questão, poderíamos perguntar se os homens também não mentem quando amam? Trata-se de uma pergunta irônica (para sermos gentis), sobretudo, no que tange ao seu amor pelos cães. Afinal, o que pensar quando vemos tantos cachorros vivendo abandonados em quintais, solitários e amedrontados, a espera de carinho e atenção, muitos deles “sacrificados” quando ficam doentes, ou seja, quando não são mais tão úteis para os seres humanos ou, então, facilmente substituídos quando envelhecem ou morrem, sentimos que este não parece ter sido um “contrato” tão justo, pois em troca de alguns afagos e restos de comida, o homem recebeu do cachorro tudo de mais belo e poderoso que ele podia dar: a sua própria vida e um amor eterno, irrestrito e incondicional.

3 thoughts on “Cães Não Mentem Quando Amam ou A Mentira é Coisa de Bicho Racional”
  1. O avistamento de retirar dos animais quaisquer sentimentos, a fim de justificar a barbárie a que são submetidos é muito doído. Temos um longo caminho pela frente dada a nossa natureza predatória que dizem ser específica dos animais “irracionais”, mas somos nós a exercitar, de todas as formas subliminares, a nossa capacidade de matar.
    Gostei muito. Obrigada.

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