Se ser é estar no mundo, não-ser é estar ausente dele, é “nada” ser. De fato, nada parece mais verdadeiro do que essa afirmação: ou estamos presentes “aqui e agora” ou não estamos em lugar algum. No entanto, se formos um pouco mais longe, é possível dizer que o ser e o não-ser são faces de uma mesma moeda, peças de um mesmo jogo: o eterno jogo da existência, do qual nos fala Heráclito. Nesse sentido, já não se trata mais de pensar o ser como ente apenas, mas de pensar o próprio ente, o existente, como mudança e transformação contínua. Um ser que nasce e morre a cada dia, e muitas vezes ao dia. Nada existe ou subsiste fora da mudança… Tudo já é, de antemão, devir. Claro e escuro, dia e noite, quente e frio, prazer e dor, alegria e tristeza… os dualismos apenas ocultam uma multiplicidade de forças, estados e intensidades. São linhas ou pontos de convergência das forças.

Sim… entramos num terreno movediço. A vida é pura mobilidade. Viver é respirar e transpirar um certo desacordo, uma certa irreconciliação das forças. É ser inteiro, mas também parte, fragmento. É tecer um fio em meio ao caos. A própria vida é um crivo no caos. Nada mais assustador, sem dúvida. O devir nos condena a constantemente nos buscar e nos reconstituir. Não é por outra razão que muitos clamam pela cessação do movimento, pela paralisação do tempo, por uma trégua nesse horror que é sentir-se partido ou ver sua vida esvair-se paulatinamente. Estabelecemos limites precisos entre o mundo da ordem (o humano e iluminado mundo do (56) conhecimento, pleno de sentidos) e o mundo do caos absoluto (o mundo das trevas, da escuridão máxima, da dissolução). Julgamos exorcizar o lado obscuro e inapreensível da existência através de nossas criações mirabolantes, mas não existe porto seguro, nem divisão autêntica. Só há um mundo, uma natureza, uma existência… E ela é, ao mesmo tempo, alegre e triste, sublime e terrível, mas – acima de tudo – é potência pura, é força, é plenitude.

Em poucas palavras, é sobre a comunhão extraordinária desses dois polos (ou faces) da nossa existência que trata A visão dionisíaca do mundo, de Friedrich Nietzsche. Examinando o esplendor da cultura grega, Nietzsche vai mostrar como apenas uma vez a arte conseguiu “apaziguar” esse antagonismo, promovendo uma espécie de encontro excepcional entre Apolo e Dioniso. Como diz o filósofo alemão, é nos seus deuses que os gregos expressam – mas também calam – a doutrina secreta de sua visão do mundo. Daí porque Apolo e Dioniso surgem como a dupla fonte de toda a sua arte. Eles representam, para Nietzsche, dois polos estéticos distintos e contrapostos que, em geral, seguem paralelos e em luta constante. Porém, miraculosamente, eles se uniram para produzir uma das mais belas manifestações do espírito humano: a tragédia grega.

Expressando, no fundo, a sua própria concepção estética da existência, Nietzsche (inspirado tanto na filosofia de Schopenhauer quanto na música de Wagner) vai tecendo o fio que nos conduz à compreensão da visão de mundo dos gregos antes de Sócrates – ou seja, antes que a moral e a lógica invadissem o território “sagrado” das forças e da potência, reduzindo toda a beleza e imprevisibilidade (57) da vida a interpretações meramente abstratas e demasiado conceituais. A tragédia teria sucumbido, como nenhuma outra arte, em função de um certo socratismo estético estéril, asséptico, frio, meramente racional. Uma razão pura que não toca a vida, que não penetra a existência, pensa Nietzsche. Composto por um artigo (que dá título à coletânea) e mais duas conferências (“O drama musical grego” e “Sócrates e a tragédia grega”), o livro nos permite acompanhar o processo de criação e o desenvolvimento das ideias que Nietzsche apresentará em sua primeira grande obra A origem da tragédia (de 1871).

Fruto da vontade poderosa dos helenos, a tragédia nasceu de uma singular simbiose entre o mais elevado e o mais subterrâneo, entre o mais claro e o mais escuro da existência. Apolo, o deus solar, o deus das formas, é quem ilumina o mundo. É o deus da beleza, do conhecimento e da verdade (vista como forma, como Ideia, como identidade). O mundo de Apolo é claro, luminoso, é um sonho: o sonho dourado de uma existência feliz e plena de significados. O homem, aqui, é um artista, ele esculpe sua própria vida, assim como esculpe a matéria, tirando-a de sua inércia. Ele a antropomorfiza e assim imprime seu rosto em tudo o que está à sua volta. Apolo é, dessa maneira, o deus da arte representativa, da arte que se consagra como uma vitória sobre o caos, sobre os horrores ocultos da existência. Já Dioniso é o seu contraponto. Ah… doce ilusão… a vida não é um sonho feliz ou, pelo menos, não é só isso. Dioniso é o deus do “crepúsculo do ser”, da mistura primordial, da dissolução do “eu” e da morte do indivíduo, da embriaguez absoluta. Em seu sentido mais profundo, ele reconcilia o homem com a natureza, ele (58) o traz de volta à sua “essência” mais vital. A existência aqui se mostra em toda a sua crueza, sem máscaras, sem disfarces: a vida que se vive na carne (como diz Albert Camus), a carne como única certeza. Sem representações, sem racionalismos, Dioniso é a pura manifestação das forças, das pulsões mais profundas, do desejo de união com a Terra – mas também com a vida, no que ela tem de mais dissonante e abissal.

Apolo “domestica” Dioniso. Dioniso faz Apolo mirar o abismo. Juntos, Apolo e Dioniso expressam a trágica visão de mundo dos gregos. Esse povo, que teria mergulhado profundamente – e sem temor – na compreensão dos mais insondáveis mistérios da existência, acreditava que a única maneira de neutralizar a dor era através da arte. “A arte e nada mais do que a arte, a única maneira de não morrer ante a verdade”. A verdade do mundo, da finitude de tudo o que existe, da vida que se basta e se explica nela mesma… Eis uma resposta estética, uma afirmação pela criação. Deixando de lado, no entanto, a ideia da arte como um consolo metafísico (que o próprio Nietzsche irá rever depois), o homem está imerso na existência e não pode fugir do seu destino como ser. Por vezes dolorosa, mas sempre exuberante, a vida é tudo o que temos de mais precioso, e bem pode ser considerado um desatino não desejar viver até o último suspiro

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