Celebração. Este é o momento em que vive o ator, autor, diretor e produtor carioca Gustavo Gasparani, que comemora 40 anos de sua sólida e reconhecida carreira. Para isso ele ocupou por inteiro um dos teatros mais simbólicos e queridos do nosso cenário artístico: o Teatro Poeira, das ótimas atrizes Marieta Severo e Andrea Beltrão. Um espaço que há 18 anos recebe os espetáculos mais significativos do cenário nacional. No Teatro Poeira Gasparani é autor e diretor de Julius Caesar- vidas paralelas – da sua Cia dos Atores -, e no Poeirinha apresenta o seu espetáculo como ator solo: Como posso não ser Montgomery Clift?. Com texto do espanhol Alberto Conejero López e direção de Fernando Philbert.

Através da história de um dos maiores ícones do cinema americano na era de ouro de Hollywood, Montgomery Clift (1920-1966), a peça reflete sobre a  opressão que a fama pode exercer numa pessoa pública, a ponto dela se perder de si tentando ser o que o mundo espera e acredita, assim nos diz a sinopse da peça. Clift teve uma vida muito conturbada, e a sua pior personagem foi viver a si mesmo. Era muito mais fácil para Clift interpretar no cinema, ser outro, do que suportar a grande dor, e ofensa, de ser quem ele era, no mundo, e no meio em que ele vivia. Não foi nada fácil, para ele, descobrir que o preço a se pagar pela fama mundial era uma conta sem fundo; e entre muitas cláusulas deste contrato nefasto, estava incluída a eterna vida das aparências, para quem almejava ser um mito das grandes telas.

Entre suas dolorosas vivências nos sets de filmagens, ao debutar no cinema em “Rio Vermelho”, em 1948, com John Wayne e Walter Brennan; as inclinações ultraconservadoras de Wayne e Brennan, os fizeram se indisporem com Clift devido a sua homossexualidade; e se mantiveram afastados dele durante as gravações do filme. É possível entender assim a imensa dimensão do grande drama que Clift vivia. A comunidade LGBTQIAPN+ sempre carregou estigmas e o preconceito de ser o que a sociedade considerava como não-natural. À época, a psiquiatria teimava em inventar teorias e tentar explicar, e teorizar, este impulso natural que é a sexualidade humana. O termo homossexualismo, que tem uma conotação de síndrome ou doença, foi imposto a todos que tinham uma orientação diferente da heterossexualidade. Somente no início da década de 1990 a OMS (Organização Mundial da Saúde) retirou o termo da lista de doenças ou problemas relacionados a saúde.

Mesmo não sendo um espetáculo da Cia dos Atores, Gasparani está em absoluta sinergia com os princípios e ideais de sua Cia. Não por acaso que ele resolveu escolher para a comemoração de seus 40 anos de carreira, nos apresentar a conturbada história de quem? Justamente a de um ator, a de um mito da indústria cinematográfica americana; amigo de Elizabeth Taylor, e galã sensível de voz grave e suave. E juntando com tudo isso a dificuldade em ser um ator homossexual nos anos 40 do século passado. Em uma concepção intimista de Fernando Philbert, a encenação nos coloca dentro do lugar mais íntimo de uma casa: o banheiro de Clift. Repleto de simbologias, a cenografia de Natália Lana, nos apresenta uma banheira em mármore. e que nos remete a um suntuoso mausoléu; que prenuncia aquilo que a atmosfera pesada do ambiente, nos faz enxergar: o esgoto e os holofotes de Hollywood. O banheiro, o local de nossa casa onde descartamos tudo aquilo que o corpo não pode reter. O banheiro, aquele, que nos comunica com o lado externo; e onde provavelmente foi o local de seu apartamento de Nova York onde Mont – como era chamado pelos amigos -, supostamente morreu. E é sobre isso de que se trata a peça, do quanto que a vida interior, e interna, resvala para fora, quando seria preciso manter tudo perfumado, mesmo que em baixo de tudo estejam os excrementos de uma sociedade bárbara no policiamento da vida alheia. Onde vidas artísticas precisam ser esculpidas para serem um modelo de tudo aquilo que não se é fora de cena. A iluminação, em refletores móveis, em maquinário em sanfona, junto com rebatedores de luz, de Vilmar Olos; nos transportam a um ambiente dos sets de filmagens. A simbiose perfeita entre a magia do teatro, e a ilusão do cinema, se dá nas intervenções sonoras dos trechos de filmes, apenas narrados por áudio, onde clift atuou. Nestes momentos, o teatro dialoga com o cinema, por alguns segundos mágicos, e conduz as nossas mentes a recriarem pelo som das vozes e a trilha- a cargo da captação delicada de Marcelo Alonso Neves -, as imagens de uma era nostálgica da sétima arte. Um grande acerto!

A construção da personagem de Clift por Gasparani é carregada de sensibilidade, onde ele precisa lidar já no começo da encenação com cenas em alta voltagem, mesclada por doses de respiro, suavidade e consciência cênica calculada. Onde o figurino de Marieta Spada colabora para a sua composição ir do lixo ao luxo. Um expediente de ator que enriquece a trajetória de ruína da personagem, e que no decorrer do espetáculo vai recuperando a bonita, e bem vestida silhueta de uma estrela bem-sucedida. O que nos toca grandemente, em todo este contexto de discussão tão necessária e urgente nos dias de hoje – onde o Brasil vive em um fio tênue entre a democracia e o fascismo -, é perceber que ainda que de forma implícita, Gasparani, está também sinceramente falando da sua condição de ator que é, e de nós todos que também o somos, e seguimos enfrentando essas cobranças infundadas até os dias de hoje: o patrulhamento da sexualidade alheia, conduzida por uma parte extremista da nossa sociedade, no que diz respeito as nossas escolhas particulares, e as nossas vidas privadas fora dos palcos e das telas.

Ao final de tudo isso, assim como para Clift o foi, com certeza para Gasparani o é, e para todos nós atores de qualquer época, também o são: “quando a luz se apagar, nunca mais haverá outra felicidade senão aquela, a estúpida felicidade de ser outro.”

Crédito da Foto:  Nil Caniné e Erik Almeida 

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