Em março de 2020, de uma hora para outra, de forma abrupta, o mundo literalmente fechou. Fechou assustado, e assombrado, devido a uma pandemia mundial de um vírus denominado Covid 19. Naquele momento, e durante uns dois anos – no mínimo -, ninguém sabia exatamente como lidar com esse fato único em todas as vidas reclusas de nosso planeta. Vivíamos em constante lockdown, e a cada dia, notícias da ciência- via OMS -, e diversos comunicados, se sobrepunham e eram sempre anunciadas, muito mais dúvidas, do que certezas. Estar no Brasil, neste momento, foi o pior de todos os infernos.

Do desgoverno absoluto, víamos dia a dia, a crueldade e a trágica condução federal, responsável em nos ceifar mais de 450 mil vidas brasileiras. Quando esperávamos por um líder para nos conduzir no melhor tratamento e cuidado, só recebíamos ódio e declarações escabrosas vociferadas por um celerado pseudo chefe de estado: E daí? Eu não sou coveiro, Todo mundo vai morrer um dia, Quem tomar a Coronavac vai virar um jacaré, Quem toma vacina pode pegar HIV; além de não comprar vacinas, de solicitar ao Exército a produção de um remédio ineficaz- e sem comprovação científica -, como a Cloroquina, obrigar o uso de um Kit Covid de prevenção à doença, e a causar o extermínio e o genocídio dos indígenas – o que já o levou a ser condenado no Tribunal Permanente dos Povos (TPP) de Roma; pela morte de 100 mil brasileiros, que poderiam ser evitadas. Ou seja, o mundo virou de cabeça para baixo e ninguém sabia o que iria acontecer, e principalmente, o pior de tudo, se estaríamos vivos, nos minutos seguintes.

Esse era o doloroso panorama em que sobrevivíamos, no segundo pior país do mundo no combate a pandemia, e sendo muito pior ainda, para um segmento de trabalhadores da sociedade brasileira: a classe artística. Principalmente em suas ações em casa de espetáculos, o teatro. O teatro é uma arte única, diferenciada, e que só pode ocorrer de forma presencial e com público. Desta maneira, o mundo todo descobriu, em primeiro lugar, como o planeta seria um local impossível de se habitar, sem a arte, sem a música, sem a televisão, sem o jornalismo; e até começarmos a investigar também um novo formato de se consumir arte: o streaming; ao mesmo tempo em que se ia intensificando a ideia de que este era o “novo normal”; e que o mundo nunca mais seria o mesmo depois dessa grande guerra a um inimigo invisível e um ser colérico que afundava a nação brasileira.

E foi assim que os artistas precisaram descobrir uma nova fórmula de se reinventar. Um modo de existirem como artistas, ao mesmo tempo em que não podiam estar se apresentando de forma presencial. Foi daí que surgiram enxurradas de lives, de bate-papos, e de construções híbridas de atos cênicos. Atos cênicos estes que buscavam criar formatos- por pura necessidade de existência-, que se parecessem com o que chamamos de teatro, já que o teatro gravado, filmado ou transmitido ao vivo; será sempre alguma coisa, entretanto, nunca será o verdadeiro teatro, na acepção da palavra. E é por toda essa sensação real de impotência, e impermanência da vida, diante de um novo normal e a clausura, que parece ter brotado a ideia do projeto Instruções para Descer uma Escada.

Em meio à rotina de aprendizado do violino, uma atriz octogenária mergulha nas lembranças e mitologias pessoais, trazendo à tona seu desejo de viver e o amor pelas artes. No entanto, a indiferença da vizinhança aos seus shows quase particulares aflora sentimentos desafiadores, agravados pelo isolamento pandêmico. Com leveza e bom-humor, somos convidados a acompanhar a jornada de Regina Gutman interpretando a si mesma em busca da poética da longevidade e outros sentidos para a existência; assim nos diz a sinopse da peça.

Desta maneira Regina Gutman do alto dos seus 79 anos, resolveu passar em revista, parte das histórias de sua produtiva vida profissional na dança e no teatro. Como muitos projetos em cartaz atualmente, o afeto, a intimidade, e a felicidade de se estar em cena de novo, tem produzido momentos singulares em nosso teatro. Assim é o espetáculo Instruções para Descer uma Escada, com texto e atuação de Gutman, e concepção, roteiro e direção de Sidnei Cruz; que organiza este exercício, em formato de depoimento por Gutman, durante o pior momento de nossa existência. Sendo o roteiro um compilado de textos baseados nos escritos de Gutman, registrados em seu caderno de anotações durante a pandemia, entre memórias e ficções, que se fundem a pequenas citações livres e vivências artísticas com a dança, o teatro, o cinema, a poesia, a filosofia e a literatura. Além de reunir fragmentos de livros, autores e artistas que influenciaram a atriz ao longo da vida, em mais de 60 anos de carreira. Entre eles, o miniconto de Julio Cortázar, publicado no livro “Histórias de Cronópios e Famas”, que inspirou o nome do espetáculo, e que nos apresenta uma pequena e curiosa história sobre as agruras da velhice. 

Um projeto intimista, que fica mais no campo da sugestão, do que da realização plena, realizado no palco do Teatro Dulcina, como em uma sala de estar – ou um pequeno apartamento -, e onde coube à toda a equipe do projeto dar uma roupagem a este singelo ato de fé ao teatro: como na direção de arte (cenário, figurino e adereços) de Patrícia Muniz, que amplia o aspecto caseiro ao criar um simpático varal, onde são colocados panos pendurados com imagens que povoam as vivências de Gutman, e no seu avesso partituras para execução de pequenas peças musicais, por ela. Assim como na iluminação pontual de Anna Padilha e Sidnei Cruz, e nas boas contribuições na preparação vocal, corporal e de violino por Nina Wirtti, Marília Felippe e Alexandre Schubert, respectivamente.

Fica para nós a alegria em termos Regina em cena – após uma pandemia cruel -, com vivacidade em sua condição de octogenária, e driblando a velhice em movimentos corporais na medida de seu talento, a tocar delicados trechos musicais em seu já conhecido violino, e a nos contar curiosas histórias de sua bonita existência.

Fotografia Aline Müller

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