Antes de um guião chegar aos cinemas ele passa por muitos territórios criativos. Desde a sua ideia original, premissa, argumento, sinopse, roteiro, construção de diálogos, filmagens, e por fim, a montagem na ilha de edição – local onde de fato nasce uma obra cinematográfica. Desta maneira, é também um processo intenso, e dos mais fascinantes, a escolha do nome de um filme, pois ele carrega em seu sentido, as digitais e identidade artística do objeto proposto. Por conta disso é bastante audacioso, e instigante, a leitura do título do filme em questão: “A Ilha de Bergman” (2021) da realizadora francesa Mia Hansen-Løve. Certamente todos os holofotes do mundo cinematográfico, e principalmente os dos cinéfilos, estarão acessos em altas-voltagens, para o que está a dizer Hansen-Løve; ao escolher este nome para a sua realização, e como locação, a ilha onde viveu a última parte de sua vida, o maior realizador de cinema de todos os tempos: Ingmar Bergman (1918-2007).

Imensa parte da obra de Bergman apresentava questões existenciais, tais como mortalidade (no antológico “O Sétimo Selo” -1956), solidão (em “Lágrimas e Sussurros”-1972) e  (em o “Olho do Diabo” –1960), e a ter como influências literárias o teatro de Henrik Ibsen e August Strindberg. Bergman realizou uma média de 60 filmes, foi agraciado três vezes com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro pelos memoráveis: (1961 – “Jungfrukällan”/”A Fonte da Virgem”, 1962“Såsom i en spegel”/”Em Busca da Verdade” e 1984 – “Fanny och Alexander”/”Fanny e Alexander”), Prêmio Honorário Memorial Irving G. Thalberg: 1970, com sete Globos de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro: (1958Smultronstället,”/”Morangos Silvestres”, 1961 – “Jungfrukällan ”/”A Fonte da Virgem”,1962 -“Såsom i en spegel”/”Em Busca da Verdade”, 1975 – “Scener ur ett äktenskap”/”Cenas da Vida Conjugal”, 1977“Ansikte mot ansikte,”/”Face a Face”, 1979 – “Höstsonaten”/”Sonata de Outono”) e 1984“Fanny och Alexander”/”Fanny e Alexander”), além de Melhor Diretor em Cannes (1958- “Nära livet”/”No Limiar da Vida”), o Urso de Ouro em Berlim (1958-“Smultronstället”/”Morangos Silvestres”) e o Prêmio de Honra- Leão de Ouro, em Veneza, em 1971.

Pela maestria que representa Bergman, é inevitável a nossa curiosidade em assistir ao guião de Mia Hansen-Løve. Hansen-Løve tem em sua cinematografia a realização de seis longas-metragens, alguns deles com temáticas delicadas sobre relacionamentos familiares, a juventude, e o amadurecimento – além da abordagem do próprio universo do cinema, assim como Bergman. Entre suas realizações, podemos citar: “Tudo Perdoado” (“Tout est Pardonné” – 2007), “O Pai dos meus Filhos” (Le Père de mes Enfants – 2009) e “Adeus Primeiro Amor” (Un amour de jeunesse – 2011). E foram justamente nestes vieses que Hansen-Løve desenvolveu a narrativa de “A Ilha de Bergman”: um casal de cineastas instala-se para escrever, durante o Verão, em Fårö, uma ilha sueca onde viveu Bergman. À medida que os seus argumentos respectivos vão avançando, e em contacto com as paisagens selvagens da ilha, a fronteira entre a ficção e a realidade dilui-se…Para contar esta história, Hansen-Løve resolveu concentrar toda a sua energia no universo feminino, onde concebeu a figura de um cineasta que costuma escrever papéis que privilegiam as actrizes mulheres, e onde o filme, e o filme dentro do filme, apresentam contextos de mulheres que vivem um amor que estão a lhes escapar, e onde elas são o centro da narrativa. Com os seus questionamentos, suas buscas, suas realizações amorosas e profissionais.

As locações do filme na Ilha de Fårö são magníficas – o que colabora também para as paletas de cores da direção de fotografia e arte -, repletas de simbologias, e que guardam grande parte da história e da vida de Bergman. Sendo inclusive o próprio Bergman quem enviou uma carta, em 1973, ao Prefeito do Condado de Gotland Visby, a sugerir a doação de sua casa, sem custos, para a municipalidade. Ele queria que ali ficasse preservado o seu legado, e que devida a atmosfera especial, poderia se tornar uma escola ou um espaço de retiro espiritual para artistas. E é justamente isso que vai lá fazer o casal protagonista, buscar inspiração para terminarem de escrever os seus argumentos. No caso em questão, Hansen-Løve, utiliza em seu guião o artificio da metalinguagem ao discutir a prática cinematográfica da cineasta Chris (Vicky  Krieps, em atuação segura) e do seu marido cineasta Tony (Tim Roth em atuação contida), como também na elipse futura da apresentação do filme dentro do filme, além do cruzamento de tempos, onde personagens, actores ficcionais e reais, se misturam. Tudo isto a partir da relação conjugal dos protagonistas, e do paralelo com a relação dos jovens Amy (Mia Wasikowska em ótima atuação) e Joseph (Anders Danielsen Lie, em ótima atuação), no filme contado. Onde somos até agraciados com o delicioso hit disco da cantora britânica Tina Charles, e a sua canção “I Love to Love”, no momento mais leve e cômico do filme. Ao final do filme assistido, descobrimos teias e emaranhados de situações que se misturam entre a realidade fílmica, e a ficção dentro da ficção. Com tudo isto, Hansen-Løve cria uma atmosfera semi-tensa, onde ficamos em suspensão, com os grandes planos de uma ilha selvagem e vazia, a esperar os momentos em que a sua narrativa irá dialogar com o universo da filmografia, e da vida de Bergman. Como por exemplo, ao ser desvendado que o casal, em crise no casamento, e na criação, ocupa o quarto da casa de Bergman, onde foram filmadas cenas de separação do casal do seu filme “Cenas da Vida Conjugal”.

Ficando aí uma das pistas do que está por vir. Misturando-se também informações sobre a vida pessoal de Bergman – até com tours guiados, que era considerado pela pequena ilha do mar báltico, tão “cruel” quanto os personagens retratados em seus filmes. E a ser apoiado por alguns que dizem que para ele ser quem era, não podia estar a trocar fraldas – em alusão aos seus noves filhos, com cinco mulheres diferentes. Sendo o mais curioso e instigante de todos, o fato em que ele ao perder a sua última esposa (Ingrid Von Rosen – que não é a grande atriz sueca Ingrid Bergman, que nem parentes eles o eram), em primeiro, cria-se uma confusão em vosso túmulo, em vistas de que na vossa lápide consta o nome “Ingrid Bergman” – pelo fato dela ter sido esposa de Bergman; e segundo, que após a morte de Ingrid, Bergman passou a ver fantasmas em sua casa, e a acreditar em vida após a morte. Só mesmo um grande amor é capaz de transmutar as nossas mais profundas convicções céticas, em transcendência e espiritualidade. Não podemos esquecer também da célebre frase de nosso mestre William Shakespeare, que muito bem o disse: “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que possa imaginar a nossa vã filosofia”. Eu também, como Bergman, sei muito bem o que isso significa.

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