Segundo Dostoievski, a simpatia provocada por uma risada revela o homem bom. Se o raciocínio for aceito, o espetáculo Gargalhada Selvagem, Christopher Durang, novo cartaz do Teatro XP, é uma fábrica de gente boa. Pois uma coisa é certa:  cada um, na plateia, ao longo da intensa noite teatral, se vira do avesso de tanto rir. A noite se torna desvairadamente simpática.

Qual a chave acionada para provocar este turbilhão incontrolável de riso? De saída, a representação oferece uma chance para exorcizar o nosso maior fantasma coletivo, o pavor de nos tornarmos selvagens sem lei, integrantes de hordas ferozes em litígio violento com a própria espécie. Sob o abrigo do riso desbragado, nos recuperamos do medo, aliás, da ameaça de virar bicho humano, flertamos com a civilização. A cena explora com acidez cortante nosso ímpeto cotidiano mais inconfessável, o impulso para matar os próximos, acabar com eles, por puro desejo de potência no mundo… Então, rimos da cena, alucinados, sem amanhã, pois o artifício macabro simbólico drena o nosso mal-estar de viver (ou sobreviver?) como coisas.

Afinal, vivemos numa sociedade bárbara faz tempo: mergulhados no consumismo desenfreado, somos diariamente reduzidos a objetos. A humanidade, esvaziada de si, cobra um preço elevado, faz surgir estranhos rompantes interiores, inconfessáveis, puro ódio. A dramaturgia de Christopher Durang, vinculada especialmente ao teatro libertário novaiorquino dos anos 1980, é inspirada pelos grandes valores alternativos da década, de certa forma ares pós-hippie, uma visão mais contundente do velho paz-e-amor. Quer dizer, legítima contracultura, como se dizia então. Consequentemente, ela pretende demolir as ruínas humanas de nossa época, em busca de erigir seres de um novo tempo.

A encenação, assinada por Guilherme Weber, foi calculada estritamente para a ampliação destes vínculos. O diretor assinou uma versão do original bastante personalizada, com a incorporação de referências outras da obra do dramaturgo, elementos da história do teatro cômico e da história do teatro, padrões de humor do universo gay. Em alguns momentos, a mão pesa, envereda por um exagero de escatologia agradável para um público mais simplório. Não precisava. De qualquer forma, o resultado surge muito objetivo: comprova o perfil artístico de Weber, muito mais um diretor adepto da liberdade do ator do que um encenador ou diretor de espetáculo. O elenco se espalha no palco, aparece alimentado por um arsenal impressionante de truques e segredos teatrais, livre para liberar em cena o melhor de si.

Reside neste ponto o segundo segredo responsável pelas gargalhadas vertiginosas da noite – a cena é liderada por Alexandra Richter e Rodrigo Fagundes, consagrados cômicos populares, mestres na arte do riso. Eles se jogam sem reservas numa espiral louca de invenção teatral. Alexandra Richter abre a noite sem qualquer pudor, desconcerta a plateia sem constrangimento ao apresentar uma mulher, no supermercado da vida, em crise de ódio por causa do desejo de chegar perto de uma lata de atum. Do patético explorado até à exaustão, chega-se ao descontrole cômico. Rodrigo Fagundes, na contracena imediata, mas também em monólogo, sustenta a explosão de comicidade em minúcias. Há um efeito teatral arrojado na peça. Os dois atores, que a rigor seriam uma dupla, na verdade contracenam em abstrato. O espetáculo apresenta dois monólogos em sequência, cada um explorando a visão “do outro lado” da situação.

Na última cena, o casal, na verdade dois atores de teatro, se encontra e envereda pelo absurdo, agora transposto para o cotidiano e a convivência; a contracena é ampliada pela presença de Joel Vieira, notável composição em travesti. O dado novo embaralha ainda mais as informações apresentadas e aprofunda a visão da vida como solidão humana profunda. As cores são ressaltadas com as citações hilárias de terapias positivas alternativas, sugeridas como panaceia para melhorar a existência.  O jogo estrutural do texto insinua uma visão peculiar do humano: do delírio interior, de tintas homicidas ou no mínimo furiosamente misantrópicas, dos dois primeiros monólogos, passa-se ao desentendimento cênico a três, de certa forma o retrato do conviver como impossibilidade. Claro, ninguém que viva neste nosso mundo contemporâneo consegue escapar, deixar de se reconhecer. A gargalhada selvagem é inevitável. Os corpos plásticos, ágeis, expressivos em tom maior, ampliam o prazer da noite. O trabalho de Toni Rodrigues na preparação corporal desponta como uma ferramenta muito hábil para fazer as ousadias da ação cênica ecoarem.

A cena nua e cinza, identificada como supermercado, uma cenografia de Dina Salem Levy, amplia a dimensão do vazio social e sublinha a prevalência do individuo sobre o fundo tenso das relações sociais. Os figurinos de Kika Lopes dimensionam os perfis de cada personagem, sempre sob um toque de exagero ou de caricatura. Os adereços, chamativos, coloridos com tons impactantes como as mercadorias das prateleiras, colaboram para dar destaque ao lado coisa da vida. A luz de Renato Machado é funcional, serve com objetividade à fluidez da ação, sublinha os climas e as intensidades expressivas. A trilha sonora de Jayme Monsanto colabora no mesmo sentido, mas sobretudo tece um panorama emocional vinculado ao nosso tempo.

Vale um destaque: já na estreia, o público pagante que prestigiou a noite demonstrava a existência de uma plateia carioca muito bem definida, o público de comédia, a grande tradição teatral da cidade. Apesar do apelo estelar do elenco – e nomeadamente Alexandra Richter já deve ser reconhecida como um nome estelar do teatro cômico carioca – parece essencial reconhecer aí a existência de um segmento estável do mercado teatral da cidade. Portanto, se o riso faz pensar, se este cartaz induz o riso até a exaustão, parece muito lógico pensar na importância de políticas diretas de apoio ao teatro cômico carioca. Chegou o tempo de liquidar velhos preconceitos bolorentos – não dá mais para insinuar a possibilidade de ver o cômico como gênero inferior, dissociado da inteligência do humano. Gargalhada Selvagem demole estes raciocínios vazios. Ou, como diria Dostoievski, demonstra o quanto vale apostar no riso, sintoma legítimo da bondade no humano.

Crédito Foto: Flavio Canavarro

Serviço na Sessão Tijolinho Rio de Janeiro

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