A encenação de Brás Cubas (no original Memórias Póstumas de Brás Cubas), pela Armazém Companhia de Teatro, é um farol que se abre no meio de tão vasta escuridão, em tempos sombrios na recente história trágica de nosso país. Um país que flertou fortemente com a destruição da cultura, da democracia, com um golpe de estado, e que nos levou por diversos momentos à idade das trevas, como em genocídios indígenas, e ao mesmo tempo em que constatávamos que uma imensa maioria brasileira ainda quer tratar negros como escravos e pesá-los em arrobas. Um tempo em que o incapacitado mental Desgovernante-Mor gostaria de voltar a reproduzir tatuagens sangrentas de quem fazia o tráfico, da Coroa Portuguesa, da cruz de batizado do seu comprador, em terras brasileiras. As marcas indeléveis de um terror brutal.

Por conta de tanto retrocesso mental e cultural, nestes últimos sete anos de Brasil, a montagem em cena no Teatro II do Centro Cultural do Brasil, de Brás Cubas, é um bálsamo para a alma, ao nos apresentar um potente, vigoroso e atualíssimo texto escrito pelo genial Machado de Assis em 1881; e com dramaturgia cirúrgica de Maurício Arruda de Mendonça, que adapta, valoriza, constrói, engrandece e organiza com brilhantismo a escrita poderosa de um dos maiores autores do Brasil, em todos os tempos. Desenvolvido em princípio como folhetim, de março a dezembro de 1880, na Revista Brasileira, Memórias Póstumas de Brás Cubas virou livro apenas em 1881. Brás Cubas apresentava assim um novo estilo de Machado de Assis: um tom cáustico, audacioso e inovador ao romper com a narração linear da época, e retratar o Rio de Janeiro com ironia, indiferença e pessimismo. Por tudo isso Brás Cubas foi considerada a obra que iniciou o realismo no Brasil. Tudo isso por retratar uma nova filosofia, o positivismo, o cientificismo, os privilégios das classes sociais e a escravidão.

A dramaturgia de Brás Cubas de Maurício Arruda Mendonça se apresenta assim em um formato de grande potência e beleza estilística, ao dar protagonismo cênico à personagem de Machado de Assis; que funciona ao mesmo tempo como testemunha ocular da história e como seu maior narrador; e dividindo a cena também com um Brás Cubas que vive desde seu nascimento até sua morte, e o seu defunto a narrar suas memórias póstumas. Nos remetendo também ao clássico texto Vestido de Noiva de Nelson Rodrigues, espetáculo que revolucionou o teatro brasileiro, em uma montagem histórica dirigida pelo diretor polonês Ziembinski, em 1943, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, que era dividido em três planos: o plano da alucinação, o plano da realidade e o plano da memória. E que em Brás Cubas se encaixa perfeitamente nessa ordem: Machado de Assis (a alucinação), Brás vivo (a realidade) e o Defunto (a memória).

O espetáculo narra o delírio que a personagem Brás Cubas tem momentos antes de sua morte, as mazelas da classe burguesa privilegiada, a vida de bom vivant de Brás, os lugares comuns da vida mundana, seus relacionamentos fracassados, seu envio – pelos pais – para estudar em Coimbra, suas sucessivas perdas no amor e na vida política. Tudo isso com interferências pontuais atualíssimas e que se encaixam perfeitamente dentro do humor metafórico de Assis; como por exemplo ao se recusar em aceitar que Brás suba nas suas costas – ao viver o escravo Laércio -, dizendo que hoje já não se é mais possível ter essa conduta, como também a música que diz em uma de suas frases: “Ele Não” (Ele Nunca, Ele Jamais), e por fim a referência que Brás poderia, entre outros, se tornar um “Mito”. Tudo isso sem perder o genial texto de Assis, repleto de riquíssimas e belas imagens narrativas e estilísticas.

A encenação de Paulo de Moraes é vigorosa e repleta de excelências na condução do elenco, no desenho de cada uma das cenas, e ao usar com maestria cada cantinho e possibilidades da caixa cênica. É impressionante o número de variáveis utilizadas, apoiadas também pelo expressivo cenário de Carla Berri e Paulo de Moraes de um casarão em decomposição- lugar de criação de Machado -, que possui um pé direito de quase 5 metros de altura, com um expediente móvel de onde sai uma cama/colchão, e que traduz tudo aquilo que o refinado texto machadiano nos diz em texto, e em palavras desenhadas em um quadro verde a giz; pela linda letra do ator Bruno Lourenço. Sem deixar de citar também o cirúrgico uso da porta cenográfica principal. Moraes nos faz lembrar o quanto de teatral, e forte, é saber usar bem as entradas, e as saídas, que uma porta realista pode nos proporcionar em cena.

A preparação corporal de Patrícia Selonk e Paulo Mantuano é muito precisa e muito bem executada pelos atores. Sendo de extrema coordenação, e beleza, os movimentos utilizados na embarcação que aderna. Os figurinos de Carol Lobato são também de muitíssimo bom gosto, muito bem confeccionados e inventivos nas suas justaposições de padronagens e texturas. A direção musical de Ricco Vianna que permeia todo o espetáculo, com o ótimo músico Ricco Viana (ou Rafael Tavares), dá corpo e grande volume à encenação. Preenchendo a cena harmonicamente com espaços sonoros, música instrumental e canto narrado. A iluminação de Maneco Quinderé valoriza com sobriedade todas as dinâmicas cenas do espetáculo, e Alex Grilli é o responsável pela expressiva cabeça do hipopótamo usada em cena por Machado.

O elenco de Brás Cubas apresenta uma atuação de grande sinergia e cumplicidade. Mudando de personagem a personagem com absoluta precisão, sem precisar recorrer necessariamente a artefatos para distinguir um dos outros. Destaque absoluto para a composição de Bruno Lourenço para Machado de Assis, e todas as suas personagens, que apresentam força, dinamismo, voz, trabalho de corpo e canto. Ele é o verdadeiro dono da cena. Ótima também a atuação de Sérgio Machado para o Brás Cubas vivo, e de Jopa Moraes como o defunto. Este trio de personagens conduzem com empenho louvável toda a narrativa da encenação. Felipe Bustamante se apresenta com segurança em suas composições, enquanto Isabel Pacheco apresenta atuação correta como Virgínia; e Lorena Lima, como Marcela e Natureza, se sai melhor em sua participação vocal.

Brás Cubas é um daqueles projetos que nos fazem reafirmar a força e a potência dos autor e do teatro brasileiro, e que uma ótima encenação pode nos oferecer nas tábuas do teatro; tão sacrificada nestes últimos 7 anos de obscurantismo. Um texto primoroso, em uma ótima adaptação, com uma encenação que transpira excelências técnicas e artísticas, liderados por um elenco muito bem preparado e coeso. Uma escolha de grande inteligência, este Brás Cubas, no vasto mundo da Armazém, oriunda de Londrina e radicada no Rio de Janeiro desde 1988, que agrega em 35 anos de trabalho consolidado, em sua trajetória artística, uma vasta galeria de memoráveis montagens, sendo a mais emblemática de todas elas a antológica e lisérgica Alice Através do Espelho.

Fotografia Mauro Kury

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