Andrea Beltrão, vem há décadas, escrevendo o seu nome no que há de melhor em nossas artes cênicas. Na TV, no cinema, ou no teatro, ela sempre apresenta um trabalho muito acima da média. E não se trata apenas da sua performance como atriz – o que por si só, já seria mais do que o esperado -, mas também pela sua coragem e postura perante as justiças universais, e pelos seus posicionamentos de mulher-artista, muito adiante do seu tempo. Isto, sem deixar de falar também na sua grande capacidade visionária, e empreendedora, na idealização e concretização – junto com a atriz Marieta Severo -, do necessário Teatro Poeira e Poeirinha. Um dos espaços mais requisitados, e respeitados por toda a classe artística, e que viraram um sinônimo de programação da mais alta qualidade.

É muito fácil perceber que o universo artístico de Beltrão não se resume apenas pelas escolhas de suas excelentes personagens – que sempre imprimem muito mais do que uma diferenciada atuação -, mas também pela sua profícua trajetória nas bases mais profundas do teatro, nas suas raízes. E com isso ela também faz história, nesse novo fazer teatral do “pré” e do “pós-pandemia”; onde a figura proeminente do “eu”, e “a primeira pessoa do singular” passou a ditar quase que todo o repertório teatral da atualidade.

Por conta de tudo isto, Beltrão, vem conseguindo realizar, em seus novos projetos teatrais, uma perfeita junção do que temos de melhor no nosso teatro: um olhar estético, técnico, vigoroso, investigativo, ao mesmo tempo, em que traz para o centro da cena questões muito pessoais, e próprias, que precisam “no hoje”- quase que obrigatoriamente -, atravessar as vivências mais íntimas dos próprios atores, que estão no centro da cena. Um tipo de teatro que já começa a apresentar um expressivo desgaste, – por ser muito parecido com aquele lugar onde “todo mundo” têm opinado sobre tudo -, como se este “todo mundo” fosse absolutamente entendedor de todos os assuntos, que quase sempre são formados na faculdade das redes sociais, e nas pós-graduações na Universidade do famélico Whatsapp.

Nunca, em toda a existência de nossa arte, vimos tantos “milhões” de pessoas quererem determinar o que os atores devem ou não fazer em cena; sendo isso ditado por todos os espectros políticos, e passando também por diversos segmentos e minorias de nossa sociedade, que vem transformando os nossos palcos, em muitas vezes, apenas em palanques políticos; e abdicando em sua maioria, a todos os bons princípios do teatro. Ações estas, que nos fazem hoje, até a desejar voltar a ver montagens de textos clássicos, com dramaturgias de carpintarias muito bem definidas, entre tantos.

E é assim que tem feito Beltrão, que depois de atuar no excelente texto da tragédia grega “Antígona”- terceira parte da trilogia tebana, que compreendem as obras “Édipo Rei” e “Édipo em Colono”, ambas de Sófocles, transformada em monólogo, livro e em filme -, e com direção de Amir Hadad; busca em diários de fatos reais, toda a obra-prima de sua dramaturgia textual e cênica. Uma verdadeira participação ativa na pesquisa e na construção da encenação. Já em “Antígona”, Beltrão mostrava-se absolutamente conectada com o que tínhamos de mais emblemático no teatro carioca; a ótima influência da Cia dos Atores em seu trabalho, liderada pelo potente diretor Enrique Diaz, e seus atores talentosos, como Gustavo Gasparani, que liderou um dos melhores espetáculos do teatro contemporâneo em nossa cidade: Ricardo III.

O que é fundamental destacar na encenação de Lady Tempestade – espetáculo em cartaz no Teatro Poeira até 27 de abril, é a fundamental e essencial contribuição de Andréa Beltrão em manter vivo o teatro, a partir de suas vivências, experiências e provocações de parceiros de ofício, com todas as primazias, e excelências, que ele pode nos oferecer como uma caixa cênica preta e mágica. Lady Tempestade é teatro de verdade, com todas as inúmeras ferramentas que faz o teatro sobreviver há milênios, e que nunca vai deixar de existir. Enquanto houver uma atriz, e uma espectadora, o teatro irá acontecer. Haverá o encontro! Assim como diz um dos maiores encenadores do teatro mundial, o inglês Peter Brook: “O teatro é a arte do encontro!” E assim, Lady Tempestade me encontrou e eu a encontrei!

Na trama escrita por Silvia Gomez e dirigida por Yara de Novaes, Andrea Beltrão interpreta A., mulher que recebe os diários da advogada pernambucana Mércia de Albuquerque (1934 -2003), e fica impactada com o testemunho pela busca de justiça,- às injustiças no presente e no futuro -, através dos relatos sobre sua atuação em defesa de centenas de presos e presas políticas do Nordeste, principalmente entre 1973 e 74, um dos períodos mais pesados da ditadura brasileira, onde muitos corpos deixaram de ser sepultados.

Para encenar as peripécias de Mércia, uma contadora de histórias, a direção de Yara de Novaes, construiu um espaço absolutamente sensorial, e altamente tecnológico, e sofisticadíssimo. Auxiliado pela criação e operação de trilha sonora interativa por Chico Beltrão, filho de Andréa. Pelo desenho de som de Arthur Ferreira e pelo potente desenho de luz geométrico e geográfico de Sarah Salgado e Ricardo Vivian – que tem o seu ápice no super conjunto de mais de 3 dezenas de refletores pares- a pino -, que banham a cena em partículas, no espaço cenográfico muito bem utilizado dos bastidores – e com um desfecho cênico surpreendente, e emocionante. Assim, por Beltrão estar cercada por estas inúmeras excelências, -um impressionante suporte em que ela reina absoluta em suas múltiplas tarefas à cumprir, tais como narrar, ser e estar Mércia; -dentro desse riquíssimo universo cênico -; faz ela ter uma atuação refinadíssima e irrepreensível.

Diante de extenso, contundente e potente material, sobre a trágica história da ditadura militar; que há 60 anos ainda assombra o Brasil; justamente por conta da não punição de tantos criminosos- em todas estas décadas de assassinatos e de golpismos-; é que Lady Tempestade, junto com “Ainda estou Aqui” de Walter Salles, vêm despertando no Brasil, e no mundo, o clamor por justiça e a negação absoluta de qualquer projeto bizarro de anistia aos golpistas desprezíveis do (des)governo Bolsonaro- sendo ele o principal líder dessa bárbarie! Coincidentemente, somos hoje, testemunhas de duas amigas e parceiras de trabalho – Fernanda Torres e Andréa Beltrão -, que vêm fazendo história com as suas personagens Eunice Paiva e Mércia Albuquerque; em não silenciarmos jamais sobre todos os crimes de ditadura de nosso Brasil.

O momento do Brasil é muito profícuo para projetos de arte que denunciem tais atrocidades, e assim como no audiovisual, o “Teatro de Andréa Beltrão”, representa nas tábuas, um dos melhores e mais importantes espetáculos dos últimos anos, sobre a verdadeira história do Brasil, sobre o hediondo regime ditatorial e sobre a permanência, e resistência, do melhor teatro realizado, com todas as ferramentas que só a caixa preta pode nos oferecer! Evoé Andréa Beltrão!

Fotografia Nana Moraes

Ficha Técnica

Lady Tempestade

com Andrea Beltrão

Direção: Yara de Novaes

Dramaturgia: Silvia Gomez

Cenografia: Dina Salem Levy

Desenho de luz: Sarah Salgado e Ricardo Vívian

Figurinos: Marie Salles

Criação e operação de trilha sonora: Chico Beltrão

Desenho de som: Arthur Ferreira

Assistente de direção: Murillo Basso

Assistente de cenografia: Alice Cruz

Identidade visual: Fábio Arruda e Rodrigo Bleque | Cubículos

Fotografia: Nana Moraes

Assessoria de Comunicação: Vanessa Cardoso | Factoria Comunicação

Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti

Produção: Quintal Produções

Teatro Poeira (Rua São João Batista, 104 – Botafogo)

Telefone: (21) 2537-8053

Horário: quinta a sábado, às 20h | domingo, às 19h

Ingresso: 120,00 (inteira) | 60,00 (meia)

Capacidade: 171 lugares

Duração: 70 minutos

Classificação: 12 anos

Bilheteria: terça a sábado, das 15h às 21h | domingo, das 15h às 19h

Ingressos à venda pela Sympla e na bilheteria do Teatro Poeira

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